Semiótica psicanalítica
Semiótica psicanalítica é uma área interdisciplinar das ciências humanas que se propõe à reflexão para uma clínica da cultura contemporânea na confluência epistemológica da semiótica aplicada e da psicanálise em extensão, construindo hipóteses e diagnósticos referentes ao “ser no mundo” atual e à realidade social a partir de suas contradições ou sintomas. Dessa forma, define e alcança o espaço de interseção das disciplinas da linguagem com as incidências do inconsciente: as categorias peirceanas (primeridade, secundidade e terceridade) e as categorias lacanianas (real, simbólico e imaginário). Sua reflexão aponta para o conjunto de processos de produção capitalista, circulação e consumo de significações na vida cotidiana, abordando todo e qualquer fenômeno humano, individual ou coletivo – em especial, o estilo de recalcamento próprio desta época da história da humanidade.
Disciplinas envolvidas
Pesquisa em semiótica e psicanálise – metodologia de aplicação das categorias de análise que permitem fazer leituras das manifestações do inconsciente a céu aberto.
Sintomas da cultura – recenseamento dos conflitos e soluções de compromisso que a vida em
sociedade impõe aos seus integrantes.
Subjetividades contemporâneas – mapeamento dos distintos modos de subjetivação e
singularização nas sociedades do século 21.
Estrutura da linguagem verbal e teoria dos discursos – estudo das funções e do campo da
palavra, com reconhecimento e descrição dos modos discursivos.
Fundamentos da psicanálise – estudo dos conceitos fundamentais da teoria psicanalítica,
cronológica e logicamente.
Formações e produções do inconsciente – estudo dos processos significantes de produção de
sentido e das regras que regem os fenômenos psíquicos.
Teoria dos gozos: estudo das diversas modalidades de satisfação pulsional, determinadas por
fatores internos e externos ao sujeito.
Arte e sublimação – estudo das capacidades de criação artística como maneiras de evitar o
recalcamento, com avaliação das produções à luz da psicopatologias.
Estudos de gênero – avaliação das consequências da diferença sexual no sujeito da
enunciação e a determinação de sua posição simbólica no processo de sexuação.
Políticas da diversidade – análise e comentário das determinações históricas, sociais e
culturais da contemporaneidade, suas formas de inclusão e exclusão.
A condição pós-humana – estudo das intervenções psicossomáticas da tecnologia, com
discussão sobre as perspectivas do pós-humanismo.
EPISTEMOLOGIA E SEMIÓTICA
Epistemologia ou teoria do conhecimento (do grego [episteme], ciência,
conhecimento; logos], discurso) é um ramo da filosofia que trata dos problemas filosóficos
relacionados à crença e ao conhecimento.
A epistemologia estuda a origem, a estrutura, os métodos e a validade do conhecimento (daí
também se designar por filosofia do conhecimento). Ela se relaciona ainda com a metafísica, a lógica e o empirismo, uma vez que avalia a consistência lógica da teoria e sua coesão fatual, sendo assim a principal dentre as vertentes da filosofia (é considerada a “corregedoria” da ciência). Sua problematização compreende a questão da possibilidade do conhecimento: Será que o ser humano conseguirá algum dia atingir realmente o conhecimento total e genuíno, fazendo-nos oscilar entre uma resposta dogmática ou empirista? Outra questão abrange os limites do conhecimento: Haverá realmente a distinção entre o mundo cognoscível e o mundo incognoscível? E finalmente, a questão sobre a origem do conhecimento: Por quais faculdades atingimos o conhecimento? Haverá conhecimento certo e seguro em alguma concepção a priori?
Há ainda outras questões relativas ao conhecimento, como a apostasia da ciência de seu
verdadeiro sentido e sua aproximação à outras formas de aprendizado com estruturas ilógicas e irracionais: O senso comum, a filosofia e a ciência, no mais das vezes, dão um caráter universal ao contingente, tornando-o dogmático. Assim, a ciência, que sempre julgou-se detentora única do saber, vê-se inserida em seu coexistente princípio de contradição.
CATEGORIAS
Charles Sanders Peirce
Charles Sanders Peirce (10 de setembro de 1839, Cambridge (Massachusetts), – 19 de abril de 1914, Milford, Pennsylvania) foi um filósofo, cientista e matemático estadunidense.
Era filho de Benjamim Peirce, na época um dos mais importantes matemáticos de Harvard.
Charles Sanders Peirce licenciou-se em ciências e doutorou-se em Química em Harvard. Ensinou filosofia nesta universidade e na Universidade de John Hopkins. Foi o fundador do Pragmatismo e da ciência dos signos, a semiótica. Antecipou muitas das problemáticas do Círculo de Viena.
Além dos títulos descritos, Peirce também era matemático, físico e astrônomo. Dentro das
ciências culturais estudou particularmente Linguística, Filologia e História, com contribuições também na área da Psicologia Experimental. Estudou praticamente todos os tipos de ciência em sua época, sendo também conhecedor de mais de dez idiomas.
As áreas pelas quais é mais conhecido, e às quais dedicou grande parte de sua vida e
estudos, são a Lógica e Filosofia. Propôs aplicar nesta última os métodos de observação, hipóteses e experimentação a fim de aproximá-la mais das características de ciência.
Peirce concebia a Lógica dentro do campo do que ele chamava de teoria geral dos signos, ou
Semiótica. Os últimos 30 anos de sua vida foram dedicados a estudos acerca da Semiótica, para Peirce um sistema de lógica. Produziu cerca de 80.000 manuscritos durante a vida, sendo que 12.000 páginas foram publicadas.
A Semiótica Peirciana pode ser considerada uma Filosofia Científica da Linguagem. A
Fenomenologia é a ciência que permeia a semiótica de Peirce, e deve ser entendida nesse contexto.
Para Peirce, a Fenomenologia é a descrição e análise das experiências do homem, em todos os momentos da vida. Nesse sentido, o fenômeno é tudo aquilo que é percebido pelo homem, seja real ou não.
Seus estudos levaram ao que ele chamou de Categorias do Pensamento e da Natureza, ou
Categorias Universais do Signo. São elas a Primeiridade, que corresponde ao acaso, ou o fenômeno no seu estado puro que se apresenta à consciência, a Secundidade, corresponde à ação e reação, é o conflito da consciência com o fenômeno, buscando entendê-lo. Por último a Terceiridade, ou o processo, a mediação. É a interpretação e generalização dos fenômenos.
A Dança dos Estudos da Linguagem pela Semiose de Peirce
Um signo, seu objeto e sua interpretação: os três sujeitos da semiose de Pierce. Os estudos
da linguagem talvez possam se encaixar nessa ação triádica, haja vista o mecanismo natural de se abrir novas possibilidades teóricas a partir de pontos já corroborados, no todo, ou até mesmo refutados, neste caso, aproveitando-se parte de estudos desenvolvidos para ganchos de novos conceitos.
A linguagem seria o signo, a escrita e a fala seriam os objetos, e as várias teorias sobre a
linguagem seriam a interpretação. A partir destes ajustes se constroem as infindas roupagens da língua e as oposições conceituais sobre este signo.
Um exemplo seria o “atomismo lógico” proposto por Bertrand Russell, no início do século
passado, cuja intenção “era considerar que as frases têm existência própria, independente do sujeito e da experiência”. Essa tese foi apoiada pelo filósofo Ludwig Wittgenstein que afirmava ser a linguagem uma “representação projetiva da realidade”. Contudo, após a evolução dos estudos ditos da corrente positivista lógica e com sua junção com as linhas pragmáticas da América do Norte, a posição de Ludwig em relação a Russell passou a ser contrária, com várias críticas sobre o modelo tradicional de interpretação aceito inicialmente. Ao observar este exemplo percebe-se que Ludwig se encaixou nas categorias da semiose pierciana. Em princípio, pegou a tese de Russell já fechada em sua terceiridade e a abriu, iniciou então seus próprios estudos sobre o signo linguagem (primeiridade), no decorrer de suas análises sobre os objetos “escrita” e “fala” desenvolveu a segundidade do signo e, deste modo, finalizou o processo novamente em outra terceiridade quando diz que “o jogo de linguagem não é nada tão elementar (…) a linguagem tem jogos incontáveis:
novos tipos de linguagens, novos jogos lingüísticos surgem continuamente, enquanto outros
envelhecem ou são esquecidos”.
Valorizando a língua falada, considerando que antes de serem escritas as linguagens eram
faladas, Saussure faz paralelo entre a linguagem e o jogo de xadrez, em um sentido de valores relativos para os signos lingüísticos (entenda-se por isso um significante – imagem acústica: um substantivo qualquer – e um significado – conceito: o substantivo real), ou seja, “o valor respectivo das peças depende de sua posição sobre o tabuleiro, da mesma forma que na língua cada termo tem seu valor pela oposição com todos os outros”.
Também nas colocações de Saussure percebe-se a influência da semiose, pois,
analogicamente, ao se começar um jogo de xadrez se têm a primeiridade no posicionamento das peças no tabuleiro, em um segundo momento (no desenrolar das jogadas, no pensamento das conseqüências de cada movimento das peças, não que se possa prever com exatidão qual será a articulação feita pelo opositor) se vê o secundismo, por fim, é chegada a hora do fechamento do ciclo com um xeque-mate ou mesmo com um empate entre os jogadores. Então, não é assim nos diálogos travados entre falantes? Primeiro se propõe um determinado assunto (primeirismo), o mesmo sendo aceito, vai-se então para o desenvolvimento dos argumentos (secundismo) – em um verdadeiro jogo de palavras, frases, orações e conceitos – as melhores explanações fecham a semiose em um ato de persuasão da parte contrária (terceirismo). Contudo, pela lógica da semiose de Peirce, na lingüística estrutural de Saussure, quando há a proposição de um novo debate, sobre o mesmo assunto, abre-se a possibilidade de um novo fechamento, da parte antes vencida ser a vencedora, basta que saiba ter habilidade no momento do secundismo.
Como em uma semiose aplicada ao macro da linguagem, a lingüística estrutural de Saussure,
como todas as outras correntes teóricas, sofreu embates, pois, segundo Émile Benveniste (antes propagador das idéias do pesquisador suíço, no Círculo Lingüístico de Praga) e Merleau-Ponty, a analogia de Saussure colocou a língua em um contexto mecânico. Para Benveniste, o signo seria uma partícula arbitrária. Já Ponty, leva em consideração a existência de um contexto inexpresso, ou seja, uma conexão que une, por exemplo, um sujeito a um verbo, um conceito que daria à sentença um caráter vivo (orgânico) e não simplesmente mecanicista.
Estes tipos de oposição podem ser tomados como algo agregador à evolução da linguagem e
não apenas como uma pura e simples realização das correntes que a estudam no decorrer da
história, em outros termos: o movimento dialético também pode ser o instrumento que propulsiona o desenvolvimento dos signos e, segundo Clément, para Hegel, tal movimentação não significa um método, mas a própria vida do espírito que se mantém através do negativo.
Ou, citando Goethe, “eu sou aquilo que tudo nega, pois o que existe, é para ser destruído”.
Jacques Lacan
Jacques-Marie Émile Lacan (Paris, 13 de abril de 1901 — Paris, 9 de setembro de 1981) foi um psicanalista francês.
Formado em Medicina, passou da neurologia à Psiquiatria, tendo sido aluno de Gatian de
Clérambault. Teve contato com a psicanálise através do surrealismo e, a partir de 1951, afirmando que os pós-freudianos haviam se desviado do sentido da obra freudiana, propõe um retorno a Freud.
Para isso, utiliza-se da lingüística de Saussure (e posteriormente de Jakobson e Benveniste) e da antropologia estrutural de Lévi-Strauss, tornando-se importante figura do Estruturalismo.
Posteriormente encaminha-se para a Lógica e para a Topologia. Seu ensino é primordialmente oral, dando-se através de seminários e conferências. Em 1966 foi publicada uma coletânea de 34 artigos e conferências, os Écrits (Escritos). A partir de 1973 inicia-se a publicação de seus 26 seminários, sob o título Le Séminaire (O Seminário).
Pensamento
Sua primeira intervenção na Psicanálise é para situar o Eu como instância de
desconhecimento, de ilusão, de alienação, sede do narcisismo. É o momento do Estádio do Espelho.
O Eu é situado no registro do Imaginário, juntamente com fenômenos como amor, ódio,
agressividade. É o lugar das identificações e das relações duais. Distingue-se do Sujeito do
Inconsciente, instância simbólica. Lacan reafirma, então, a divisão do sujeito, pois o Inconsciente seria autônomo com relação ao Eu. E é no registro do Inconsciente que deveríamos situar a ação da Psicanálise.
Esse registro é o do Simbólico, é o campo da linguagem, do significante. Lévi-Strauss
afirmava que “os símbolos são mais reais que aquilo que simbolizam, o significante precede e determina o significado”, no que é seguido por Lacan. Marca-se aqui a autonomia da função simbólica. Este é o Grande Outro que antecede o sujeito, que só se constitui através deste – “o inconsciente é o discurso do Outro”, “o desejo é o desejo do Outro”.
O campo de ação da psicanálise situa-se então na fala, onde o inconsciente se manifesta,
através de atos falhos, esquecimentos, chistes e do relato dos sonhos, enfim, naqueles fenômenos que Lacan nomeia como “formações do inconsciente”. A isto se refere o aforismo lacaniano “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”.
O Simbólico é o registro em que se marca a ligação do Desejo com a Lei e a Falta, através
do Complexo de Castração, operador do Complexo de Édipo. Para Lacan, “a lei e o desejo
recalcado são uma só e a mesma coisa”. Lacan pensa a lei a partir de Lévi-Strauss, ou seja, da interdição do incesto que possibilita a circulação do maior dos bens simbólicos, as mulheres. O desejo é uma falta-a-ser metaforizada na interdição edipiana, a falta possibilitando a deriva do desejo, desejo enquanto metonímia. Lacan articula neste processo dois grandes conceitos, o Nome-do-Pai e o Falo. Para operar com este campo, cria seus Matemas.
É na década de 1970 que Lacan dará cada vez mais prioridade ao registro do Real. Em sua
tópica de três registros, Real, Simbólico e Imaginário, RSI, ao Real cabe aquilo que resiste a
simbolização, “o real é o impossível”,”não cessa de não se inscrever”. Seu pensamento sobre o Real deriva primeiramente de três fontes: a ciência do real, de Meyerson, da Heterologia, de Bataille, e do conceito de realidade psíquica, de Freud. O Real toca naquilo que no sujeito é o “improdutivo”, resto inassimilável, sua “parte maldita”, o gozo, já que é “aquilo que não serve para nada”. Na tentativa de fazer a psicanálise operar com este registro, Lacan envereda pela Topologia, pelo Nó Borromeano, revalorizando a escrita, constrói uma Lógica da Sexuação (“não há relação sexual”, “A Mulher não existe”). Se grande parte de sua obra foi marcada pelo signo de um retorno a Freud, Lacan considera o Real, junto com o Objeto a (“objeto ausente”), suas criações.
Este artigo é uma extensão de um ensaio publicado mais de uma década atrás (Santaella,
1986) na revista Cruzeiro Semiótico, a revista da Associação Portuguesa de Semiótica, editada por Norma Tasca. No artigo anterior, fiz uma comparação geral entre as três categorias fenomenológicas universais de C. S. Peirce, a primeiridade, secundidade e terceiridade, e as três categorias conceituais da realidade humana, de Jacques Lacan, os registros do imaginário, real e simbólico.
Essa comparação foi encorajada por dois fatores pelo menos. O primeiro devido ao fato de
que as categorias de Peirce são universais. Elas aparecem em qualquer fenômeno de qualquer
espécie, a presença delas é particularmente evidente em um fenômeno de natureza triádica como são os três registros lacanianos ou a tríade freudiana da dinâmica psíquica em inconsciente, subconsciente e consciente, mais tarde redefinida como id, superego e ego.
O objetivo do presente artigo é avançar alguns passos na comparação entre Peirce e Lacan.
Tenho por propósito mostrar que a lógica da categoria peirciana da terceiridade, que é a lógica do signo, pode contribuir para o entendimento das complexas interações dos três registros lacanianos do imaginário, real e simbólico.
As categorias universais de Peirce
Peirce levou exatamente 30 anos, de 1967 a 1897, para completar sua teoria das categorias.
Estas foram originalmente apresentadas no seu ensaio de 1867 “Sobre uma nova lista de categorias” (Pierce, 1931-1958, 1.545, também publicado em Pierce, 1981, vol. 2, pp. 49-59 e Peirce, 1992, pp.2-10). Entretanto, foi apenas em 1897 que o sistema triádico de Peirce ficou “fundamentalmente completo,” quando ele “acrescentou o possível como um modo de ser, e, ao fazê-lo, desistiu da sua teoria probabilística das freqüências inspirada em Mill,” renunciando, ao mesmo tempo, a qualquer resquício de nominalismo que pudesse ainda porventura haver em seu pensamento. Foi só em 1902 que Peirce adotou suas categorias, então chamadas de categorias fenomenológicas, como base geral para toda a sua doutrina lógica.
Como afirmado em 1902 (L75: B8), há três perspectivas a partir das quais as categorias
deveriam ser estudadas antes de serem claramente apreendidas: (1) qualidade, (2) objeto e (3) mente.
Do ponto de vista ontológico da qualidade, o ponto de vista da primeiridade, as categorias aparecem como: (1.1) qualidade ou primeiridade, isto é, o ser de uma possibilidade qualitativa positiva, por exemplo, a mera possibilidade de uma qualidade nela mesma, tal como vermelhidão, sem relação com qualquer outra coisa, antes que qualquer coisa no mundo seja vermelha. (1.2) reação ou secundidade, quer dizer, a ação de um fato atual, qualquer evento no seu aqui e agora, no seu puro acontecer, no ato em si de acontecer, o fato em si mesmo sem que se considere qualquer causalidade ou lei que possa determiná-lo, por exemplo, uma pedra que rola de uma montanha. (1.3) Mediação ou terceira idade, o ser de uma lei que governará fatos no futuro (Pierce, 1931-1958, 1.23), qualquer princípio regulador geral que governa a ocorrência de um fato real, como por exemplo, a lei de
gravidade que rege o rolar da pedra da montanha.
Do ponto de vista do objeto ou secundidade, isto é, do ponto de vista do existente, as
categorias são: (2.1) qualia, quer dizer, fatos de primeiridade, por exemplo, a qualidade sui generis do vermelho no céu em um certo entardecer de um outono qualquer nos pampas gaúchos. (2.2) relações, isto é, fatos de secundidade, tal como a percussão resultante da batida da pedra no chão, quando o esforço da pedra contra a resistência do solo resulta em polaridade bruta. (2.3) representação, isto é, signos ou fatos de terceiridade: a palavra “céu,” uma foto ou uma pintura do céu como signos do céu.
Do ponto de vista da mente ou terceiridade, as categorias são: (3.1) sentimento ou
consciência imediata, quer dizer, signos de primeiridade, por exemplo, a qualidade de sentimento vaga e indefinida que a vermelhidão do céu em um crepúsculo no outono produz em um certo observador. (3.2) sensação ou fato, quer dizer, sentido de ação e reação ou signos de secundidade, por exemplo, ser surpreendido diante de um fato inesperado. (3.3) concepção ou mente nela mesma, sentido de aprendizagem, mediação ou signos de terceiridade, por exemplo, este parágrafo que acabo de escrever e que você está lendo agora (Houser et al., 1992, p. xxvii; Peirce L75: B8; cf. Santaella, 1992, p. 75).
O tópico mais importante relativo às categorias peircianas, entretanto, está no fato de que elas são universais. Os conceitos categoriais são, portanto, extremamente gerais e abstratos. Peirce (1931- 1958) afirmou que suas categorias meramente sugerem um modo de pensar: “Talvez não seja correto chamar as categorias concepções. Elas são tão intangíveis que não passam de tons ou nuanças das concepções” (1.353).
Assim, as categorias universais não substituem nem excluem a variedade infinita de outras
categorias mais específicas e materiais que podem ser encontradas em todos os fenômenos. Elas são apenas noções gerais indicando o perfil lógico dentro do qual algumas classes de idéias se incluem.
Desse modo, as categoria da primeiridade inclui as idéias de acaso, originalidade, espontaneidade, possibilidade, incerteza, imediaticidade, presentidade, qualidade e sentimento. Na secundidade, encontramos ideias relacionadas com polaridade, tais como força bruta, ação e reação, esforço e resistência, dependência, conflito, surpresa. Terceiridade está ligada às ideias de generalidade, continuidade, lei, crescimento, evolução, representação e mediação.
Disso se pode concluir que as categorias também estão logicamente subjacentes aos três
registros psicanalíticos. Dada a generalidade lógica dessas categorias, entretanto, elas não são capazes de especificar o conteúdo desses registros, pois essa especificação só pode vir do campo da psicanálise. Consequentemente, a fenomenologia e a semiótica só podem fornecer o substrato lógico, sem poder indicar quais são as características específicas que a primeiridade, secundidade e terceiridade adquirem na psicanálise. A natureza dos três registros será apresentada brevemente abaixo, seguida do exame de suas correspondências com as três categorias.
Os três registros psicanalíticos
O Imaginário
O imaginário é basicamente o registro psíquico correspondente ao ego (ao eu) do sujeito,
cujo investimento libidinal foi denominado por Freud de Narcisismo.
O eu é como Narciso: ama a si mesmo, ama a imagem de si mesmo … que ele vê no outro.
Essa imagem que ele projetou no outro e no mundo é a fonte do amor, da paixão, do desejo de reconhecimento, mas também da agressividade e da competição. (Quinet, 1995, p. 7)
Na sua “Introdução ao narcisismo,” Freud (1914/1968a) já havia percebido que não existe, no início, uma unidade compatível ao eu do indivíduo, devendo esse eu ser construído. No seu texto sobre o estágio do espelho, Lacan veio dar conta exatamente dessa constituição da função do eu que Freud mencionara sem desenvolver. É bastante conhecido o fato de que, para descrever a fase do espelho, Lacan se utilizou do esquema ótico, ou melhor, de um certo uso do esquema ótico, que fosse capaz de introduzir, além da constituição do eu, também a função do sujeito na relação especular.
O estágio do espelho se refere ao período em que o bebê, na idade entre seis e dezoito meses
mostra grande interesse em sua própria imagem no espelho. Lacan explicou esse interesse singular tomando como referência a ideia de Bolk de que o lactente humano é, de fato, desde a origem, em seu nascimento, um prematuro, fisiologicamente falando. Por isso está numa situação constitutiva de desamparo; experimenta uma discordância intra-orgânica. Portanto, segundo Lacan, se a criança exulta quando se reconhece em sua forma especular, é porque a completeza da forma se antecipa com relação ao que logrou atingir; a imagem é, sem dúvida, a sua, mas ao mesmo tempo é a de um outro, pois está em déficit com relação a ela. Devido a esse intervalo, a imagem de fato captura a criança e esta se identifica com ela. Isso levou Lacan à ideia de que a alienação imaginária, quer dizer, o fato de identificar-se com a imagem de um outro, é constitutiva do eu (moi) no homem, e que o desenvolvimento do ser humano está escondido por identificações ideais. É um desenvolvimento no qual o imaginário está inscrito, e não um puro e simples desenvolvimento fisiológico. (Miller, 1977, pp. 16-17 apud Santaella & Nöth, 1998, pp. 189-190).
A constituição do eu toma lugar durante o estágio do espelho e começa com o
reconhecimento da identidade próprio do eu através da imagem especular em um jogo paradoxal, de oscilação entre o eu e o outro. Senhor e servo do imaginário, o ego se projeta nas imagens em que se espelha: imaginário da natureza, do corpo, da mente, das relações sociais. Buscando por si mesmo, o ego acredita se encontrar no espelho das criaturas para se perder naquilo que não é ele. Esta situação é fundamentalmente mítica. É uma metáfora da condição humana, uma vez que estamos sempre ansiando por uma completude que não pode jamais ser encontrada, infinitamente capturada em miragens que ensaiam sentidos onde o sentido está sempre em falta.
A correspondência do imaginário com a categoria da primeiridade não é difícil de ser
percebida. Qualquer identificação é imaginária em todas as ocasiões. Identificar é obliterar a
distinção entre o sujeito e o objeto da identificação. É dissolver as fronteiras que poderiam distinguir e separar o ego do outro. A identificação corresponde, portanto, a um estado monádico que almeja a totalidade, completude e auto-suficiência. O imaginário é uma mônada que se alimenta da miragem do outro, uma miragem na iminência da dissipação e da perda. Ser eu, sendo, ao mesmo tempo, o outro, é idílico mas também mortífero, pois um dos polos dessa pretensa unidade está sempre à beira do desaparecimento. Tal iminência de dissipação é uma das principais características da primeiridade.
O Real
O registro psíquico do real não deve ser confundido com a noção corrente de realidade. Para
Lacan, o real é aquilo que sobra como resto do imaginário e que o simbólico é incapaz de capturar.
O real é o impossível, aquilo que não pode ser simbolizado e que permanece impenetrável ao sujeito do desejo para quem a realidade tem uma natureza fantasmática. Diante do real, o imaginário tergiversa e o simbólico tropeça. Real é aquilo que falta na ordem simbólica, os restos que não podem ser eliminados em toda articulação do significante, aquilo que só pode ser aproximado, jamais capturado.
Lacan veio reconhecer que, para o ser falante, não há adequação na relação entre o objeto e
sua imagem, entre as partes do corpo e a imagem que se tem dele. Como a nossa imaginação
desordenada pode preencher sua função? Como o imaginário e o real podem ser articulados na economia psíquica do sujeito? Esta polaridade, esta fratura entre o imaginário e o real, entre o simbólico e o real corresponde exatamente à categoria da secundidade. O real é sempre bruto e abrupto. É causação não governada pela lei do conceito. O real resiste ao simbólico porque ele insiste, en souffrance, de tocaia para tomar de assalto o simbólico.
O simbólico
O registro do simbólico é o lugar do código fundamental da linguagem. Ele é lei, estrutura
regulada sem a qual não haveria cultura. Lacan chama isso de grande Outro. O Outro, grafado em maiúscula, foi adotado para mostrar que a relação entre o sujeito e o grande Outro é diferente da relação com o outro recíproco e simétrico ao eu imaginário. Miller (1987) nos fornece uma apresentação bastante clara do simbólico, no que se segue.
O outro é o grande Outro da linguagem, que está sempre já aí. É o outro do discurso
universal, de tudo o que foi dito, na medida em que é pensável. Diria também que é o Outro da biblioteca de Borges, da biblioteca total. É também o Outro da verdade, esse Outro que é um terceiro em relação a todo diálogo, porque no diálogo de um com outro sempre está o que funciona como referência tanto do acordo quanto do desacordo, o Outro do pacto quanto o Outro da controvérsia.
Todo mundo sabe que se deve estar de acordo para poder realizar uma controvérsia, e isso é o que faz com que os diálogos sejam tão difíceis. Deve-se estar de acordo em alguns pontos fundamentais para poder-se escutar mutuamente. … É o Outro da palavra que é o alocutário fundamental, a direção do discurso mais além daquele a quem se dirige. A quem falo agora? Falo aos que estão aqui e falo também à coerência que tento manter. (p. 22)
A correspondência do registro simbólico com a terceiridade é óbvia. O grande Outro em
todos os seus sentidos é sempre terceiridade. É lei, mediação, estrutura regulada que prescreve o sujeito.
A análise fenomenológica dos registros psicanalíticos exemplifica uma característica
importante das categorias universais de Peirce. Embora essas categorias sejam onipresentes, não podendo ser claramente separadas em qualquer fenômeno dado, há sempre uma predominância de uma sobre as outras. Assim, primeiridade, secundidade e terceiridade podem ser proeminentemente percebidas no imaginário, real e simbólico respectivamente.
A onipresença das categorias
Uma extensão importante que pode ser derivada da correspondência das categorias
fenomenológicas com os três registros baseia-se no princípio da recursividade. Se as categorias são onipresentes, o real e o simbólico devem também aparecer no registro do imaginário, o real e o imaginário devem estar presentes no registro do simbólico e o imaginário e simbólico também devem estar presentes no registro do real.
O imaginário é a categoria psicanalítica da demanda de amor, o real é a categoria da pulsão e
o simbólico, do desejo. A análise da demanda de amor, de fato, revela que ela depende da
linguagem, não há demanda sem linguagem, pois a demanda humana se expressa através de signos ou através daquilo que Lacan chamou de cadeia de significantes. Alienada na linguagem a demanda humana é capturada no deslocamento infinito da cadeia metonímica do desejo, na cadeia de significantes do simbólico. Ao mesmo tempo, a demanda de amor é acossada pelas vicissitudes obscuras da pulsão sexual. Apesar da predominância da demanda de amor (primeiridade) que o caracteriza, o imaginário também apresenta sua face simbólica (terceiridade) e sua face real (secundidade).
Relações triádicas homólogas também aparecem no registro do real que está sob a
dominância da pulsão. Esta indica a grande distinção que separa a sexualidade animal da humana.
Pulsão é uma necessidade que não pode jamais ser inteiramente satisfeita. Devido à mediação do simbólico, a mera necessidade não pode existir para o humano. O que existe em seu lugar é o curso circular sem fim da pulsão. O papel do imaginário na pulsão também se torna aparente na fantasia que acompanha a busca humana pela satisfação.
O registro do simbólico, sob o governo do desejo, não é menos triádico do que os outros três
registros. Sem o estofo do imaginário, o simbólico não seria nada mais do que uma cadeia vazia, um infinito deslocamento de significantes. Sem o real do corpo, por outro lado, ele não seria nada mais do que uma maquinaria combinatória, maquinaria desencarnada feita de padrões e regras.
Da fenomenologia à semiótica
Outro domínio para a comparação entre Lacan e Peirce diz respeito à visão peirciana da
relação entre fenomenologia e semiótica. Para Peirce, fenomenologia ou faneroscopia é uma quase ciência.
É apenas a porta de entrada para sua arquitetura filosófica. Embora as categorias sejam um
ponto de partida importante para a análise de um dado fenômeno, as ferramentas analíticas não vêm delas, mas sim dos conceitos semióticos.
Isso não quer dizer que a fenomenologia e a semiótica estejam separadas. Ao contrário, elas
estão indissoluvelmente atadas. Mesmo assim, suas diferenças não podem ser negligenciadas. A fenomenologia descreve o fenômeno como ele aparece. O resultado dessa descrição são as categorias universais. Ora, a terceira categoria corresponde à noção de signo. Ela é o signo. Assim, a semiótica nasce no coração da fenomenologia. A diferença está no fato de que os conceitos semióticos
resultam da análise lógica e, consequentemente, constituem-se em conjuntos altamente
interconectados de ideias distintivas que podem funcionar como dispositivos poderosos para o estudo de qualquer fenômeno como signo.
Disto decorre minha hipótese de que a definição do signo pode fornecer recursos adicionais
para a análise dos três registros psicanalíticos. Para Peirce, o signo é uma relação indissociável de (1) um fundamento, aquilo que permite ao signo funcionar como tal, (2) um objeto, aquilo que determina o signo e que é, ao mesmo tempo, representado pelo signo e (3) um interpretante, o efeito que o signo está apto a produzir em uma mente interpretadora qualquer. Esse efeito pode ser da ordem de um pensamento, de uma mera reação, sensação ou de uma simples qualidade de sentimento.
De acordo com essa lógica triádica do signo, o imaginário, isto é, a categoria da demanda de
amor, ocupa a posição lógica do fundamento do signo. O real, a categoria da pulsão sexual, ocupa a posição lógica do objeto do signo, enquanto o simbólico, a categoria do desejo, ocupa a posição lógica do interpretante. Esta análise pode ser ainda mais detalhada quando os três tipos de fundamento, os dois tipos de objeto, o objeto imediato e o dinâmico, e os três tipos de interpretante, o imediato, o dinâmico e o final, são levados em consideração para uma melhor compreensão do imaginário, real e simbólico. Entretanto, essas relações exigem pesquisas que devem ficar para o futuro.
SINTESE DA UNIDADE
1) Porque a semiótica psicanalítica é uma área interdisciplinar?
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2) Explique as três fases: crença, conhecimento e verdade.
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3) Faça breve comentário sobre a semiose de Peirce.
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4) Em que se fundamenta o pensamento de Jacques Lacan?
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5) Explique e fundamente os três registros Psicanalíticos.
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