ESTUDOS SOBRE FREUD

 

TEXTOS DE ESTUDOS SOBRE FREUD

 

A – Textos de autores sobre Freud

 

1. Tópicos da teoria psicanalítica freudiana

 

Prof. Laerte M. Santos

 

  1. 1.     Freud nasceu em 1856 na Áustria e faleceu em 1939 em Londres.
  2. 2.     Fundador da PSICANÁLISE ou TEORIA PSICANALÍTICA que é o campo de hipóteses sobre o funcionamento e desenvolvimento da mente no homem. Se interessa tanto pelo funcionamento mental normal como pelo patológico.
  3. 3.     Freud demonstrou que o homem não é apenas um ser racional. Há impulsos irracionais que nos influenciam.
  4. 4.     Estes impulsos irracionais se manifestam através do INCONSCIENTE
  5. 5.     INCONSCIENTE = parte maior de nossa psique, não é uma coisa embutida no fundo da cabeça dos homens e nem um lugar e sim uma energia e uma lógica em tudo oposta à lógica da consciência  que é a parte menor e mais frágil da nossa estrutura mental. Podemos imaginar a consciência como a ponta de um iceberg e a montanha submersa abaixo como o inconsciente. “A percepção que temos do mundo é consciência; as lembranças, inclusive a dos sonhos e devaneios são consciência. A memória é consciência e só há memória de fatos mentais conscientes. ” (pág. 46, O que é psicanálise, Fábio Herrmann)
  6. 6.     Características do INCONSCIENTE: opostas às características da consciência. Por isso desconhece o tempo, a negação e a contradição. Suas manifestações não são percebidas diretamente pela consciência por isso requer deciframento e interpretação. (Exemplo: nos sonhos o inconsciente se revela através de um conteúdo manifesto = o que aparece na consciência –  e de um conteúdo latente = o conteúdo real e oculto). “O inconsciente… é uma interpretação ao contrário” (pág. 40, O que é psicanálise, Fábio Herrmann). Se como veremos o princípio básico do funcionamento da mente é, segundo Freud, o de evitar desprazer, o INCONSCIENTE é então o lugar teórico das representações recalcadas ou o próprio processo de recalcamento, que impede certas idéias de emergir na consciência.
  7. 7.     A sexualidade tem uma importância fundamental na psicanálise mas não tem um sentido restrito, ou seja, apenas genital. Tem um sentido mais amplo = toda e qualquer forma de gratificação ou busca do prazer. Então a sexualidade neste sentido amplo existe em nós desde o nosso nascimento.
  8. 8.     A partir deste sentido amplo da sexualidade podemos entender os princípios antagônicos que fazem parte da teoria psicanalítica freudiana: A) EROS (do grego clássico, vida)   X   THANATOS (do grego clássico, morte) B) Princípio do Prazer   X    Princípio da Realidade

Eros = Eros não é apenas o deus do amor, mas é sobretudo a tendência à promoção de laços, tendência a estabelecer ligações.  Ligado às pulsões de vida, impulsiona ao contato, ao embate com o outro e com a realidade. Sendo a vida tensão permanente, conflito permanente coloca-nos no interior de afetos conflitantes e pode não ser a realização do princípio do prazer.

Thanatos = é o princípio profundo do desejo de não separação, de retorno à situação uterina ou fetal, quer o repouso, a aniquilação das tensões. Está vinculado às pulsões da morte pois somente esta poderá satisfazer o desejo de equilíbrio, repouso e paz absolutos. Quer a abolição das tensões, o grau zero de energia. A pulsão de morte “designa uma categoria fundamental de pulsões que se contrapõe a pulsões de vida e que tendem para a redução completa das tensões, isto é, tendem a reconduzir o ser vivo ao estado anorgânico”.(LAPLANCHE E PONTALIS, 1983; p.407).

No entanto a vida, expressa por EROS, é uma vitória sobre a força conservadora do inorgânico. Sobrevive-se porque o organismo uma vez “jogado na vida” quer se conservar e fazer seu próprio percurso até a morte.

Princípio do Prazer = é o querer imediatamente algo satisfatório e querê-lo cada vez mais. “É a tendência que, em busca da descarga imediata da energia psíquica, não quer saber de mais nada – nem do real, nem do outro, nem mesmo da sobrevivência do próprio sujeito” (pág. 95, “Sobre Ética e Psicanálise”, Maria Rita Kehl). “… Se o Princípio do Prazer busca a descarga imediata de qualquer excitação – e à recordação deste percurso que vai da carga de excitação (desprazer) à sua descarga (prazer), chamamos desejo – isto eqüivale a dizer que busca um estado de não-tensão, de não-desejo, de repetição de um eterno mesmo. (Maria Rita Kehl, “O Desejo”, Cia de Letras, pág. 370, 1990) .Não está necessariamente ligado a Eros mas de forma mais profunda a Thanatos pois “se o desejo do homem for o repouso, o imutável, a fuga do conflito, somente a morte (Thanatos) poderá satisfazer tal desejo.” (pág. 63, “Repressão Sexual”, Marilena Chauí)

Princípio da Realidade = princípio que nos faz “compreender e aceitar que nem tudo o que se deseja é possível, que se for possível nem sempre é imediato, que nem sempre pode ser conservado e muitas vezes não pode ser aumentado.” (pág. 63, op. Cit., Marilena Chauí). Impõe-nos limites internos e externos.

 

  1. 9.       Psicanálise e Agressividade – Freud presumiu na nossa vida mental a existência de dois impulsos, o sexual e o agressivo.  Os dois impulsos se encontram normalmente fundidos. Assim um ato de crueldade pode possuir um significado sexual inconsciente como um  ato de amor pode ser um meio inconsciente de descarga do impulso agressivo. A agressividade tem uma origem biológica e social na teoria freudiana. A agressividade faz parte das pulsões de morte mas não está ligada exclusivamente a Thanatos. Está também ligada a Eros fazendo parte das pulsões eróticas. Isto acontece por exemplo quando tentamos modificar o outro ou o mundo para torná-los mais compatíveis com o princípio do prazer. No limite é uma tendência destrutiva mas também “representa a vocação humana para a rebeldia.” (pág. 473, Os sentidos da Paixão, Maria Rita Kehl). Toda civilização faz um pacto pelo qual se reprime grande parte da agressividade em troca das vantagens da convivência humana.  Mas o preço que pagamos é o de um rebaixamento geral dos instintos de vida e o excesso de repressão pode levar às doenças psíquicas. O ideal para Freud “seria um equilíbrio entre a realidade psíquica do homem e as exigências da vida em sociedade“. (pág. 116 da apostila, Texto: O caso de Romualdo e a violência)
  2. 10.    A nossa vida psíquica tem três instâncias segundo Freud: 1ª) ID = parte inconsciente formada por instintos e impulsos orgânicos e desejos inconscientes, (ou pulsões) que são regidas pelo Princípio do Prazer e são de natureza sexual no sentido amplo já explicitado acima. O Centro do ID é o Complexo de Édipo. 2ª) SUPEREGO = parte inconsciente. Instância repressora do ID e do EGO, proveniente tanto das proibições culturais e sociais interiorizadas “quanto das proibições que cada um de nós elabora inconscientemente sobre os afetos.” (M. Chauí, op. cit., pág. 66). É o agente da civilização que tem o papel de dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo. Através dele a civilização consegue inibir a agressividade humana introjetando-a para o interior do sujeito propiciando o SENTIMENTO DE CULPA. 3ª) EGO = é a consciência submetida aos desejos do ID e repressão do SUPEREGO. Obedece ao Princípio da Realidade. Vive sob angústia constante pois busca um equilíbrio entre os desejo do ID e a repressão do SUPEREGO, busca satisfazer ao mesmo tempo o ID e o SUPEREGO. Quando o conflito é muito grande e o EGO não consegue satisfazer o ID este é rejeitado determinando o processo chamado REPRESSÃO. Mas o que foi reprimido não permanece no inconsciente e reaparece então sob a forma de SINTOMAS (=representantes do reprimido).
  3. 11.    O SUPEREGO HOJE – “No momento de acumulação do capital, no momento weberiano do capitalismo, o importante não era gozar mas sacrificar, acumular, trabalhar. Hoje, ao contrário, o importante é dispender, gozar, você tem direito ao gozo. Como conseqüência temos, por exemplo, a cultura do narcisismo, como diria Christopher Lasch, na qual o sujeito está comprometido em se proporcionar o máximo de gozo. Mas isso gera uma enorme angústia, pois o gozo é impossível, principalmente esse gozo pleno que nos exige a cultura da sociedade de mercado: gozar sempre e muito, tudo que se puder. Cria-se uma dívida com o superego, pois o mesmo superego que cobra que você não goze, que se sacrifique, cobra que você goze.  Hoje o importante é dispender, gozar, você tem direito ao gozo. Mas isso gera uma enorme angústia, pois o gozo é impossível, principalmente esse gozo pleno que nos exige a cultura da sociedade de mercado: gozar sempre e muito, tudo que se puder.” (Maria Rita Kehl)
  4. 12.    SUBLIMAÇÃO –  Os desejos inconscientes são transformados em uma outra coisa, exprimem-se pela criação de uma outra coisa: as obras de arte, as ciências, a religião, a filosofia, as técnicas, as instituições sociais e as ações políticas. Artistas, místicos, pensadores, escritores, cientistas, líderes políticos satisfazem seus desejos pela sublimação e, portanto, pela realização de obras e pela criação de instituições religiosas, sociais, políticas, etc. Porém, assim como a loucura é a impossibilidade do ego para realizar sua dupla função, também a sublimação pode não ser alcançada e, em seu lugar, surgir uma perversão social ou coletiva, uma loucura social ou coletiva. O nazismo é um exemplo de perversão, em vez de sublimação. A propaganda, que induz em nós falsos desejos sexuais pela multiplicação das imagens de prazer, é outro exemplo de perversão ou de incapacidade para a sublimação.
  5. 13.    NARCISISMO– Sentimento emotivo de amor dirigido ao próprio indivíduo (homem ou mulher). É termo criado por Freud. Se bem que se trata de um sentimento até certo ponto natural, especialmente nas crianças, pode entretanto manifestar-se na idade adulta como uma irregularidade às vezes provocada por conflitos, desajustes sexuais, decepções amorosas, etc. Segundo a Psicanálise, o Narcisismo leva a eleger-se a si próprio como objeto de amor, em vez de essa emoção ser dirigida a outra pessoa do sexo oposto; a libido é dirigida anormalmente ao próprio eu. “A criança conserva em sua fantasia a fusão narcísica inicial com a mãe até que alguma experiência de separação venha desiludi-la. Para o pequeno ser narcisista, tudo aquilo que é recebido como bom e prazeroso, é sentido como parte de si mesmo, somente quando alguma coisa frustra a criança, é que ela a sente como parte do mundo externo. A ilusão da criança de que ela e a mãe são Um, de que ela é tudo o que a mãe deseja se rompe quando o desejo da mãe se move para outro lugar. Neste instante a criança percebe que o Grande Outro não é tudo, que não pode estar sempre presente e a realidade se instala entre os dois que tentavam ser Um.”
  6. 14.    MECANISMOS DE DEFESA: O Ego não é somente consciência. Há funções inconscientes nele, os famosos Mecanismos de Defesa. Através deles o EGO dribla as exigências do ID e do SUPEREGO. “Diante de uma pulsão proibida, cuja satisfação daria prazer se o superego não se opusesse, há que convencer o princípio do prazer de que sucederá dor. Para efetivar esse truque, o EGO aciona uma espécie de alarma, um pequeno sinal de angústia, sempre que tal tipo de pulsão se lhe apresenta à porta. Como se dissesse ao ID: veja como isso que aparece bom, na verdade, dói. E o ID, enganado até certo ponto, cede energias para contrariar seus próprios fins pulsionais. Basta então ativar os MECANISMOS DE DEFESA, carregados dessa energia…” (O que é Psicanálise, Fábio Herrmann, pág. 52 e 53).
  7. 15.    Segundo Freud há três fases da sexualidade humana (lembre-se do sentido amplo da sexualidade) que se desenvolvem entre os primeiros meses de vida e os 5 ou 6 anos: 1ª) Fase Oral = prazer através da boca (ingestão de alimentos, sucção do seio materno, chupeta, etc…)  2ª) Fase Anal = prazer localizado primordialmente nas excreções e fezes, brincar com massas e com tintas, etc… 3ª) Fase Genital ou Fálica = prazer principalmente nos órgãos genitais e partes do corpo que excitam tais órgãos. Momento do surgimento do Complexo de Édipo.
  8. 16.    COMPLEXO DE ÉDIPO = complexo de sentimentos e afetos com componentes de agressividade, fúria e medo, paixões, amor e ódio, oriundos dos desejos sexuais em relação aos genitores de sexo oposto que acontece entre os 5 e 6 anos de idade. O complexo de Édipo se manifesta no menino desejando a mãe e querendo eliminar o pai, seu concorrente. O medo da castração  por parte do pai faz com que renuncie ao desejo incestuoso e aceite as regras ou a Lei da Cultura. Na menina se manifesta pelo fato de descobrir que não tem o pênis-falo, e com isto, sente-se prejudicada, tem “inveja do pênis”. Ao perceber que a mãe também não o tem, passa a desvalorizá-la e, nessa medida, se dirige para a figura do pai, dotado de FALO e, portanto, cheio de poder e fascinação.
  9. 17.     A INVEJA DO PÊNIS-FALO – De acordo com a interpretação do psicanalista  LACAN (nascido em Paris em 1901 e falecido na mesma cidade em 1981), o que provoca inveja não é o pênis anatômico, mas o PÊNIS-FALO, o objeto imaginário fálico, que tem o sentido de COMPLETUDE e de PLENITUDE NARCÍSICAS.  Neste sentido o homem também tem inveja do pênis-falo. Com este sentido o FALO está presente em todos os seres humanos de tal forma que a falta do pênis nas meninas e mulheres simplesmente é negada. O falo é, em última análise, o significado da falta, conforme o define Lacan.

 

“Tais conceitos são importantes para o esclarecimento da idéia ‑ ou da acusação ‑ de que Freud foi um machista impenitente, defen­sor da superioridade do homem sobre a mulher. Freud fala da inveja do pênis, sem dúvida. A mulher teria inveja do pênis, e sua ausência seria fonte de graves sentimentos de inferioridade. Entretanto, aquilo que provoca inveja não é o pênis anatômico, mas o pênis-falo, o objeto imaginário fálico, apto como tal a investir quem o tenha de um valor de completude e de plenitude narcísicas. Nessa medida, também o homem tem inveja fálica. Se o seu pênis é o falo, isto é, se fica preso à etapa de desenvolvimento da libido, será sempre rondado ‑ e roí­do ‑ pelo medo da castração. Poderá perder o falo para ver-se possuidor de um pênis apenas, com as chuvas e trovoadas eventuais que isso possa acarretar. O pênis-falo não pode ser apenas potente: ele tem que ser onipotente. O homem, nessa medida, pode sentir‑se inferio­rizado ‑ ou impotente ‑ na medida em que não alcance um rendimento sexual que testemunhe essa onipotência. A inveja fálica, de homens e mulheres, pode deslocar-se para qualquer coisa que teria significado fálico, isto é: qualquer coisa que implique plena expansão narcísica e pleno sentimento de completude. Esta coisa pode ser a inteligência, a beleza física, a força do corpo, a voz, a produção artística, o canto, a fama, a glória, o dinheiro ‑ o que quer que seja. Dado que o falo é um objeto mítico, imaginário, impossível, urna vez que não existe nada que possa conferir a quem quer que seja a completude ‑ a não ser a morte ‑, a inveja fálica, que é o desejo de possuí‑lo, será sempre presente, numa tentativa de retorno a uma atitude narcísica também impossível. (Do livro: Os Sentidos da Paixão, Companhia das Letras, 1987, págs. 307-327)

 

– Mas apesar de o menino abandonar o desejo pela mãe por medo da castração ela não deixa de acontecer para ambos os sexos e de forma simbólica de acordo com a interpretação de Lacan.  CASTRAÇÃO no sentido simbólico significa a impossibilidade de retorno ao estado narcísico do qual fomos expulsos com o nosso nascimento. CASTRAÇÃO significa a perda, a falta, o limite imposto à onipotência do desejo. É um processo que já acontece desde o corte do cordão umbilical.  A rigor quem castra é a mãe. Se a mãe permite a independência da criança, negando formar um todo narcísico com ela, ela castra. A castração é um evento absolutamente progressista na nossa vida e que torna possível a vida em sociedade e a nossa autonomia.  Através da CASTRAÇÃO introduz-se a LEI DA CULTURA que é produto de Eros e não de Thanatos. A Lei não existe para aniquilar o desejo e sim para articulá-lo com a convivência social. “É a guardiã do desejo na medida em que o encaminha no sentido de uma subordinação ao Princípio da Realidade” (pág. 312, Os Sentidos da Paixão, Hélio Pellegrino)

–         A CASTRAÇÃO nos faz sentir como seres incompletos, carentes. Mostra-nos que é da brecha entre tudo o que se quer e aquilo que se pode (princípio de Realidade) que nascem as possibilidades de movimentos do desejo. Mas o seu exagero pode trazer conseqüências negativas como as neuroses.

 

  1. 15.           Psicanálise, razão e consciência –  Descobrir a existência do inconsciente não é esquecer a consciência, a razão, e abandoná-las como algo ilusório e inútil. É pela consciência, pela razão, que desvendamos e deciframos o inconsciente. Em outras palavras, a razão não está descartada apesar das forças irracionais inconscientes. Longe de desvalorizar a razão a psicanálise exige que o pensamento racional não “faça concessões às idéias estabelecidas, à moral vigente, aos preconceitos e às opiniões de nossa sociedade, em que os enfrente em nome da própria razão e do pensamento.” (pág. 356, Convite à Filosofia, Marilena Chauí)
  2. 16.           Psicanálise e Ética – A psicanálise mostrou que uma das causas dos distúrbios psíquicos é o rigor excessivo do SUPEREGO, a CASTRAÇÃO excessiva. Quando isto acontece há dois caminhos não éticos: ou a transgressão violenta de seus valores pelos sujeitos reprimidos ou a resignação passiva de uma coletividade neurótica, que confunde neurose e moralidade.” (pág. 356, op. Cit., Marilena Chauí). Não éticos porque a violência é introduzida: violência da sociedade que exige dos sujeitos padrões de conduta impossíveis de serem realizados e, por outro lado, violência dos sujeitos contra a sociedade, pois somente transgredindo e desprezando os valores estabelecidos poderão sobreviver. Em suma é necessária a repressão dos desejos, da sexualidade, para ser possível a convivência social e a ética “mas por outro lado a repressão excessiva destruirá primeiramente a ética e depois a sociedade.” (pág. 356, op. Cit. Marilena Chauí).  Segundo Freud o sujeito da psicanálise é responsabilizado, sim, por seu inconsciente pois “quem mais, além de mim, pode se responsabilizar por algo que, embora eu não controle, não posso deixar de admitir como parte de mim mesmo? Responsabilidade difícil de assumir, esta – pelo estranho que existe em nós, age em nós e com o qual não queremos nos identificar. No entanto, eticamente, é preferível que o sujeito arque com as conseqüências dos efeitos de seu inconsciente, fazendo deles o início de uma investigação sobre o seu desejo, a que ele permita que tais efeitos se manifestem apenas na forma do sintoma. Ou, o que é ainda mais grave, que o sujeito tente se desembaraçar do inconsciente, por meio dos atos de intolerância que projetam no outro o que o eu não quer admitir em si mesmo. A passagem por uma análise torna o sujeito não apenas mais responsável pelo desejo  que o habita, mas também preserva as pessoas que lhe são mais próximas, aquelas que dependem de seu afeto e de sua compreensão – filhos, parceiros, subordinados etc -, de se tornarem objetos das projeções e das passagens ao ato de quem não quer assumir as condições de seu próprio conflito.” (pág. 32, Sobre Ética e Psicanálise, Maria Rita Kehl).

 

 

 

 

 

2. A psicanálise e o mundo de hoje

(Do livro: Para que serve a psicanálise? – de Denise Maurano, Jorge Zahar Editor, 2003, págs. 9-18  )

 

Eros e Comunicação

Esse apelo a se ligar aos outros participa obviamente da história da humanidade, mas o que chamo a atenção aqui é para o fato de, na contemporaneidade, termos inflacionado essa estratégia. Assim, as pessoas recorrem mais facilmente a alguém ao alcance da mão, ou ao alcance da linha telefônica, do que a um templo religioso para se amparar. Da mesma forma, também não crêem mais nos poderes da racionalidade para encontrarem uma fórmula para melhor viver. Parece que estamos mesmo sob o império de EROS. E Eros não é apenas o deus do amor, mas, tal como propôs a psicanálise, é sobretudo a tendência à promoção de laços, tendência a estabelecer ligações.

É claro que a forma como isso se dá, tête-à-tête ou via internet, faz diferença, mas o elemento motivador e a natureza da busca, creio estarem inalterados, pelo menos por enquanto. O que a psicanálise chamou de LIBIDO, energia de Eros, cobra incansáveis investimentos, sobretudo no amor e na sexualidade, e traz em seu rastro a outra face da mesma moeda: o ódio.

 

Falta, linguagem e psicanálise

Foi a inquietação da falta, vivida na contemporaneidade como falta de amor, ou insatisfação sexual, que deu origem á invenção da psicanálise. A psicanálise veio servir para tratar dos impasses decorrentes disso. Cedo, Freud percebeu que aquilo que fazia sofrerem as mulheres que ele atendia, e lhes fazia produzir sintomas inexplicáveis aos olhos dos médicos de seu tempo, não eram senão diferente expressões de um mal inexorável: o mal de amor. Cedo, ele se deu conta, também,  de que o tratamento para isso passava pela FALA, pelos efeitos do acionamento desse fantástico dispositivo que é a fala. Através dela, nos incluímos nessa rede que nos envolve e tenta nos articular uns com os outros. E não importa se se trata de um surdo-mudo: certamente este também está incluído na estrutura de relações tecidas pela LINGUAGEM.

 

É verdade que desde a invenção da psicanálise até agora muita coisa mudou. Mudaram os costumes, a sociedade certamente não é mais a mesma, diferente recursos para se lidar com a vida dominam a cena contemporânea. Porém não creio que tenhamos nos deslocado do apelo à libido como modo de operar com nossas inquietações. Muito pelo contrário, como bem observou o inventor americano, acima mencionado, nunca se produziram tantos artifícios para ampliarmos nossos laços. O sucesso das SALAS DE BATE-PAPO e toda a correspondência veiculada pela internet o atestam. Isso sem falar da exploração que o marketing faz da questão, erotizando todo e qualquer objeto que se apresente ao consumo para melhor veiculá-lo. Assim, diante da compatibilidade entre a natureza da inquietação que domina a cena atual e a natureza da invenção psicanalítica, esta última continua sendo um recurso privilegiado em nossos tempos. Com isso, quero dizer que diante dos inúmeros sintomas decorrentes do MAL DE AMOR, que constitui a tônica do mal-estar da atualidade, a psicanálise apresenta-se como opção para tratar dessa questão. No que se refere a maneira de lidar com as inquietações amorosas, as mudanças são acessórias, não fundamentais. Daí a pertinência da presença da psicanálise. Afinal, seja bem ou mal falada, a psicanálise continua sempre sendo lembrada.

 

Inúmeras propostas apresentam-se a cada dia para responder a essa idéia de que o “bom exercício da libido” resolve as dificuldades da vida. Desde o apelo ao consumo, seja de carros, mulheres, drogas, medicamentos, conhecimento, informação, tecnologia e tudo quanto se suponha que o dinheiro possa comprar, até as terapias mais diversas, tudo vai no sentido de sanar aparentemente, apaziguar imaginariamente, as pressões que movem esse apelo feito a Eros.

 

O que decorre dessa profusão de estratégias disponíveis na cena contemporânea é que o caminho que um sujeito trilha desde a constatação de seu mal-estar até chegar a um tratamento psicanalítico é, freqüentemente, bastante alongado. Muitas vezes ele só recorre à psicanálise depois de inúmeras tentativas fracassadas de suprimir seu mal-estar. É como se a sensação de vazio e desamparo, que ocasionalmente experimentamos de maneira mais grave, fosse um indicativo de uma doença que acomete a uns poucos desprivilegiados, da qual teríamos a todo custo que nos livrar o mais rápido possível. Tornamo-nos, assim, presas fáceis de vendedores de ilusões. Não que eu tenha algo contra as ilusões, muito pelo contrário: elas são alimentos fundamentais de nossas vidas. Sublinho apenas o rico da manipulação sórdida, cruel, que se faz nesse campo.

 

A psicanálise perante a incompletude humana

Na contracorrente dessas estratégias encontra-se a psicanálise. Por mais que em sua difusão ela tenha sido propagada das formas mais estapafúrdias, sua proposta, desde seus suados primórdios no rigor da ética cunhada por Freud, foi a de ser uma estratégia para tratar desse vazio, que na maior parte do tempo traduzimos por falta de alguma coisa ou falta de alguém. Sua intenção não foi a de constituir-se como promessa de saná-lo. Aqui, o tratamento não é a cura, já que não podemos nos curar da ferida de sermos humanos. Ou seja, substituindo a idéia de cura como o que estaria na finalização de um tratamento, por meio da extirpação de um mal, entra em cena o procedimento investigativo do tratamento psicanalítico, que traz como uma de suas conseqüências o efeito terapêutico. O vazio é impossível de ser extirpado, mas cabe-nos encontrar meios menos nefastos de abordá-lo. Como li num folhetim: “Não se pode mudar a direção do vento, mas pode-se alterar a posição das velas.”

 

Viver sem se haver com a dor da falta, seja esta identificada ao que quer que seja, é simplesmente inumano. Não podemos nos livrar daquilo que constitui propriamente  a nossa humanidade, a nossa diferença em relação aos outros animais. O que pode ser alterado é a maneira como vivemos a experiência da vida, a posição que ocupamos ao nos defrontarmos com a falta daquilo que supostamente iria nos tornar completos. Sugiro que a palavra “psicopatologia” – em sua origem grega, “psico-pathos-logia” – seja traduzida ao pé da letra: busca de sentido (logia) daquilo que causa espanto (pathos) à alma (psico). Sem dúvida que esta incompletude nos espanta, e podemos reagir a isso, neurótica, psicótica ou perversamente….

 

Não pensem que estou defendendo uma posição pessimista, do tipo que toma essa incompletude com um efeito de fabricação com o qual teríamos que nos conformar. Não concordo com a idéia de que Freud ou Lacan – psicanalista francês, que se propôs a retornar ao rigor de Freud – sejam pessimistas. Defendo, sim, essa orientação ética que funda a proposta psicanalítica, acolhendo a vida não em uma dimensão ideal, como gostaríamos que ela fosse, mas em sua dimensão real. Sofremos os efeitos desse real todas as vezes que nos confrontamos com o fato de que as coisas não estão ao alcance de nossas mãos, como gostaríamos que estivessem.

 

Isso é duro? Certamente. A expressão brasileira “cair na real” é primorosa na indicação da queda de ilusões que decorre da confrontação com o real, porém, enganar sua existência, na promessa de que pelas forças da mente ou do que quer que seja poderemos escapar, intensificará, por conseqüência, nossa fragilidade – e não nossa força. Afirmar a vida com tudo o que nela há, de alegria e de sofrimento, de leveza e de dureza, é não à mutilação de nenhum de seus componentes. Mas obviamente, se é simples falar assim, não é simples viver dessa forma. Somos facilmente atraídos pela posição ressentida, “que injustiça fizeram contra mim!”. Ou, ainda, pelo vislumbre romântico que suspira por um ideal jamais passível de realização, sob pena de, caso efetivado, perder todo o encantamento. Assim estamos nós em nossa radical humanidade, nessa condição de errantes, suplicantes de algo que nos oriente, que nos complete e acene com a possibilidade de precisão na adequação de nossas ações, dado que nunca sabemos direito se o que resolvemos fazer está certo ou não. Como humanos, subvertemos as determinações do instinto. Não comemos meramente por fome, nossas atividades sexuais não se limitam ás funções biológicas, nosso sono tampouco. Somos afetados por inúmeras variáveis.

 

Nosso universo de necessidades é intermediado pelo das representações. As coisas não são o que são, mas o que representam para nós. Desta forma, podemos perder o apetite, ou comer demais, se ficamos tristes; podemos optar pela abstinência sexual por uma razão ideológica ou moral; podemos perder o sono diante de uma preocupação. O que nos rege não é propriamente um instinto, mas algo de outra natureza que, que Freud propõe chamar de PULSÃO.

 

A adequação de nossa percepção ao que existe de fato é permeada por esse universo que nomeamos como campo da LINGUAGEM. Isso quer dizer que, se não temos um acesso direto e objetivo às coisas, inventamos um estratagema para contornar esse abismo que nos separa do mundo: inventamos a linguagem. Ou seja, desenvolvemos, mas que qualquer outro animal, nossa capacidade de nos comunicarmos por recursos simbólicos e imaginários. Inventamos palavras para designar as coisas, nomear o que nos falta; criamos ícones para adorar, ideologias para nos salvar do desamparo.

 

Construímos, com o desenvolvimento da linguagem, uma rede de elementos através da qual encontramos meios de nos referendar. Situamos, com isso, o Outro a quem nos dirigimos. Assim, eu não sou apenas Fulano de Tal, eu sou Fulano, filho de Sicrano, neto de Beltrano, ou seja, sou parte de uma rede de relações, por onde apreendo algo da enigmática significação de mim mesmo. Encontro-me dentro de uma estrutura de parentesco, na qual assumo funções diferentes conforme o elemento com o qual me relaciono: em relação aos meus pais sou filha, em relação aos meus filhos ou mãe, e assim por diante.

 

Porém o universo de linguagem é também o universo da mais absoluta arbitrariedade, afinal as palavras não são as coisas, e seu sentido deixa sempre margem a diferente interpretações. É por isso mesmo que os valores aos quais nos agarramos para nos proteger não necessariamente nos protegem em definitivo. E isso vale tanto para as nossas vidas individuais como para a história da humanidade.

———————–

Narcisismo – Conta o mito que o jovem Narciso, belíssimo, nunca tinha visto sua própria imagem. Um dia, passeando por um bosque, viu um lago. Aproximou-se e viu nas águas um jovem de extraordinária beleza e pelo qual apaixonou-se perdidamente. Desejava que o outro saísse das águas e viesse ao seu encontro, mas como o outro parecei recusar-se a sair do lago, Narciso mergulhou nas águas, foi às profundezas à procura do outro que fugia, morrendo afogado. Narciso morreu de amor por si mesmo, ou melhor, de amor por sua própria imagem ou pela auto-imagem. O narcisismo é o encantamento e a paixão que sentimos por nossa própria imagem ou por nós mesmos porque não conseguimos diferenciar o eu e o outro.

 

3. SONHOS

(Do livro “Freud Básico”, Michael Kahn, ed. Civilização Brasileira, págs 201-231)

 

Senhoras e Senhores: Um dia, descobriu-se que os sintomas patológicos de determinados pacientes neuróticos têm um sentido. Nessa descoberta, fundamentou-se o método psicanalítico de tratamento. Acontecia que, no decurso desse tratamento, os pacientes, em vez de apresentar seus sintomas, apresentavam sonhos. Com isso, surgiu a suspeita de que também os sonhos teriam um sentido.

– Sigmund Freud, Conferências introdutórias

 

Freud considerava A interpretação dos sonhos,(1) publicado em 1900, o seu livro mais importante. De fato, ele contém riquezas extraordinárias. Introduz o complexo de Édipo, a distinção entre o processo primário e processo secundário, as origens infantis do funcionamento adulto e muito mais. Entretanto, não era porque descrevia essas descobertas significativas que Freud se orgulhava muito deste livro, mas sim porque, como seu título deixa claro, anunciava ao mundo que ele realizara, em sua opinião, o que ninguém antes dele tinha sido capaz de realizar: decifrar o código dos sonhos. Ele sabia que isto era uma importante façanha, por sua própria dimensão; além disso, estava convencido de que com isso desvendara a chave para compreender e tratar a neurose. Se um terapeuta não interpretasse sonhos, Freud passou a acreditar, ele não estava fazendo psicanálise.

O primeiro insight importante de Freud sobre a natureza dos sonhos foi que, a exemplo dos sonhos despertos, os sonhos noturnos representam um desejo. Os sonhos despertos expressam um desejo que a pessoa pode reconhecer. Quando criança, eu sonhava em ser uma estrela de beisebol do meu time da primeira divisão da cidade. Não tinha nenhuma vergonha disso. Meus amigos tinham sonhos semelhantes, e os compartilhávamos livremente. Hoje em dia, sonho ocasionalmente com poder passar toda uma manhã de domingo numa confeitaria, lendo o New York Times – sem sentir nenhuma culpa. Também não tenho vergonha deste sonho. Baseando-se no que acontece nos sonhos despertos, Freud deduziu que os sonhos noturnos poderiam também ser uma expressão dos desejos. Ele descobriu que os sonhos infantis são freqüentemente uma expressão tão flagrante dos desejos quanto os sonhos despertos. E relatou que uma de suas filhas, após um dia de jejum provocado por uma enfermidade, sonhou com morangos, omelete e pudim.

Freud observou que também em alguns sonhos de adultos o desejo é tão transparente, que pouca ou nenhuma análise é preciso para compreendê-lo. Ele relatou que, se comesse comida salgada no jantar, acordaria invariavelmente com sede à noite. Pouco antes de acordar, sempre estava sonhando que desfrutava o mais delicioso e satisfatório drinque imaginável. Então, acordava e tinha de beber algo de verdade. O fato de estar com sede causava o desejo de beber, e o sonho representava a realização desse desejo. (2)

No entanto, essa transparência é rara. Nos sonhos que mais ricamente iluminam as forças inconscientes, o desejo está oculto; este foi o importante insight que Freud teve em seguida. Ele sustentou que o único meio de poder descobrir o desejo é encorajar o sonhador a fazer associações livremente com os elementos do sonho.

Não é difícil perceber por que Freud considerava a interpretação dos sonhos tão importante. Ele acreditava que todos os sonhos eram construídos do mesmo modo que os sintomas neuróticos. Como acreditava que remover um sintoma neurótico dependia da apreensão do seu significado inconsciente, interpretar um sonho seria um passo em direção à cura, porque o significado do sonho revelaria parte do significado do sintoma. O seu elegante sistema acabou se provando simples demais, mas ainda contém insights notáveis sobre o nosso mundo onírico.

 

O MODELO DE FREUD

Neurose: A neurose é causada pelo recalque de desejos sexuais inaceitáveis. O recalque não foi suficientemente completo para proteger a pessoa da culpa inconsciente, daí a aflição da neurose. Os desejos encobertos estão sob pressão, buscando expressão, e encontram essa expressão nos sintomas neuróticos. Numa tentativa de ao menos evitar a culpa consciente, o desejo incompletamente recalcado se disfarça, para poder passar pela censura que, antes de tudo, o recalcou. Portanto, o sintoma deve ser decodificado para que revele seu significado inconsciente.

Sonhos: Os desejos encobertos permeiam os sonhos. Ao detectar um relaxamento da censura durante o sono, o desejo recalcado tenta se aproveitar dessa oportunidade para se manifestar. No entanto, embora relaxada, a censura não está de folga. Alguma função egóica montando guarda à noite reconhece que o desejo sem disfarce causaria uma ansiedade suficiente para acordar a pessoa que dorme. Assim, embora careça do poder de recalcar o desejo que tem em estado de vigília, essa função dá um jeito de disfarçá-lo e, desse modo, proteger (em geral) o descanso do indivíduo que está dormindo.

Os desejos inaceitáveis e disfarçados causam o problema neurótico e devem ser decodificados. Os desejos inaceitáveis e disfarçados que produzem o sonho podem ser decodificados, desmascarando desse modo um dos desejos geradores de sintomas.

Podemos compreender por que Freud chamou a interpretação dos sonhos de estrada soberana para o inconsciente, e por que ele achava que ela era a chave indispensável para psicanalisar a neurose.

O modelo de Freud não mais descreve inteiramente a teoria psicanalítica da neurose. Embora os desejos sexuais reprimidos provavelmente desempenhem um importante papel em muitos problemas da vida, eles não são mais considerados como a única causa. Como vimos em capítulos anteriores, uma ampla variedade de desejos e medos inconscientes pode gerar problemas.

 

A ORIGEM DO SONHO

Freud descobriu que os sonhos eram uma resposta a algo que o sonhador vivenciara no dia anterior. Alguma cadeia de associações relacionadas àquele acontecimento (que pode ter sido um pensamento ou um acontecimento de fato) conduziu a um desejo que tinha de ser recalcado, por ser inaceitável para o sonhador. À medida que a censura relaxa durante o sono, o desejo busca se expressar.

 

O QUE A CENSURA FAZ

Freud chamou os acontecimentos lembrados do sonho de seu conteúdo manifesto. O desejo oculto, chamou de conteúdo latente. A censura converte o conteúdo latente no sonho manifesto, distorcendo-o. Os principais processos pelos quais a distorção é efetuada são a condensação e o deslocamento. O seguinte estudo de caso é uma ilustração.

Um cliente meu sonhou que assistia a uma filmagem. Uma parelha de cavalos estava sendo conduzida até a beira de um penhasco, com a intenção de forçá-los a pular para a morte. Embora soubesse que era apenas um filme e que os animais estavam completamente a salvo, o sonhador teve de virar o rosto quando a parelha se aproximou da beira do precipício.

A primeira associação que ele fez foi de cavalos com “prostitutas”. (Observação:  No original, a associação foi de horses com whores)

Então ele se lembrou de uma conversa telefônica com um velho amigo, que ocorrera no dia do sonho. Muitos anos antes, ele e esse amigo tinham conseguido dinheiro para pagar a faculdade trabalhando como “parceiros de dança” a bordo de um cruzeiro. No telefonema do dia anterior, o amigo, relembrando, havia dito: “Não passávamos de uma dupla de prostitutas, não é mesmo?”

Ambos haviam desfrutado as viagens e o fato de serem tirados para dançar. Meu cliente lembrou que, em um dos cruzeiros, seu amigo quebrara a regra fundamental e dormira com uma passageira muito atraente. Ele tinha muita inveja da coragem rebelde do seu amigo e, acima de tudo, da sua invejável experiência sexual.

 

Suas associações em relação ao aparente, mas irreal, perigo que os cavalos corriam:

 

Parece que os cavalos são vítimas de abusos e assassinatos. Tenho certeza que na verdade eles são estrelas mimadas do cinema. Penso que o mesmo acontece com algumas prostitutas de classe alta. Todos têm pena delas e pensam nelas como dependentes de drogas maltratadas e desamparadas. Mas imagino que algumas delas levam uma vida maravilhosa – de um luxo preguiçoso, imersas no mundo do sexo.

 

Eu lhe disse que ele parecia estar com inveja.

 

Sabe de uma coisa, acho que estou mesmo. Estou realmente farto desta vida burguesa que preparei para mim. Acho que tenho uma fome secreta pelo submundo, pelos bas-fonds. Adoraria ser uma prostituta. Adoraria ser uma prostituta sofisticada, como éramos no navio, só que eu dormiria com os passageiros e seria bem pago. Eu seria bem pago, mas a recompensa mais importante seria o interminável sexo-sem-responsabilidade. Estou totalmente farto das minhas responsabilidades burguesas.

 

Pararemos por aqui em relação ao andamento desse sonho. Como a maioria dos sonhos, este contém todo um nexo de significados, dos quais descobrimos apenas alguns poucos. Alguns psicanalistas afirmaram seriamente, pelo menos em parte, que se entendêssemos totalmente um sonho qualquer de um determinado paciente, entenderíamos a análise inteira. Confesso que fico feliz quando meu cliente e eu trabalhamos juntos um significado útil para um sonho.

No sonho relatado, o resíduo diurno gerador é a conversa telefônica do cliente com seu amigo e suas últimas observações sobre eles serem prostitutas. O conteúdo latente é o desejo do cliente de se eximir das suas responsabilidades e encontrar um paraíso sexual. “Prostitutas” é deslocado para cavalos. Toda uma saga é condensada numa única imagem, onde ele assiste à filmagem de uma breve cena de cinema.

Está longe de ser óbvio que a maioria dos sonhos representa desejos. No entanto, após interpretar inúmeros sonhos seus e dos seus clientes, Freud estava convencido de que a realização do desejo caracteriza todos os sonhos. Seus críticos o desafiaram, citando os sonhos ansiosos e os sonhos punitivos. Ele podia facilmente lidar com esses últimos, uma vez que o superego fora acrescentado ao seu sistema: os sonhos punitivos representam a realização de um desejo do superego, uma de cujas tarefas mais importantes é punir o seu anfitrião pelos desejos que considera inaceitáveis. Os sonhos ansiosos deram mais trabalho a Freud, e, trinta anos após a publicação original de O mal-estar na civilização, ele ainda estava revisando o livro, lutando com o problema. Hoje em dia, com cem anos de reflexão sobre a questão, provavelmente é seguro dizer que, embora a teoria da realização do desejo seja muito útil para a compreensão de um sonho, nenhuma fórmula única pode fazer justiça à riqueza da nossa vida onírica. Consideraremos isso mais adiante.

Nos dias que antecederam a elaboração deste capítulo, eu estivera inutilmente folheando livros e textos de Freud, para encontrar um outro sonho ilustrativo adequado. Na noite antes de começar a escrevê-lo, tive um sonho do qual me lembrei inusitadamente bem. Quase nunca me lembro dos meus sonhos, portanto esse foi um presente inusual do meu inconsciente.

 

Sou um jogador de um time de futebol americano e estou dentro do vestiário, prestes a entrar em campo para começar a jogar. O time é composto de homens e de mulheres. Todos estão vestidos com roupas do dia-a-dia. Reconheço que as mulheres são ex-alunas minhas. Percebo que deve haver mais de onze jogadores prestes a entrar em campo. Embora não seja responsabilidade minha sou apenas um jogador do time-, assumo o dever de contá-los, enquanto penso: “Cadê o assistente do treinador, que deveria ser responsável por isso?” Começo a contar cabeças em voz alta, e Mimi Rollins começa a enunciar números aleatórios em voz alta, para me distrair. Fico furioso e digo: “Isso é uma grosseria, e, além do mais, não é engraçado; é uma estupidez.” Pronuncio a última palavra com tal ênfase, que ela me soa desnecessariamente agressiva, dada a banalidade do deslize de Mimi.

 

Acordei satisfeito e grato por ter tido esse sonho necessitado. Então me pus a explorar minhas associações.

 

Vi Mimi na semana passada. Ela parecia estar bem. Contar os jogadores é como contar as cadeiras, antes de os alunos chegarem para a minha aula. Algumas vezes, enquanto as desempilho e as conto, digo para mim mesmo que realmente não acho ser essa uma atribuição do instrutor, mas sempre a exerço, de qualquer modo. Arrependo-me de não ter levado adiante minha carreira de jogador de futebol americano na faculdade. Considero agora que foi um erro ter parado. Acho as garotas da equipe atraentes. O que eu disse para Mimi é uma desagradável paráfrase de uma frase de um dos meus filmes prediletos, dita pela personagem de Debra Winger, em Shadowlands, para nocautear um trouxa mulherengo: “Você está tentando ser grosseiro ou não passa de um estúpido?” Mimi Rollins me conduz a Mimi, da ópera La Boheme. Penso nos meus amigos Bill e Sarah, e no tempo em que Bill adorava ópera e discos de ópera, e eles eram fascinados por Pavarotti. Naquela época, Bill e Sarah eram em grande medida meu pai e minha mãe. Eles me davam de comer e tomavam conta de mim, e certamente me amavam muito. Eu adorava ficar na casa deles. Depois do falecimento de Sarah, tudo isso mudou. A minha figura maternal se fora, e as circunstâncias da minha vida haviam mudado, de modo que eu ia à cidade de Bill e Sarah com menor freqüência.

 

Minha interpretação:

 

Conformar-me-ei com apenas uma das possíveis interpretações. À medida que reflito sobre o sonho e as associações, o sonho me parece revelar um poderoso anseio inconsciente de ser cuidado, de ser uma criança dependente. Em minha vida consciente, sou compulsivamente responsável e cuidadoso. O sonho diz que tenho muita raiva de assumir esse papel. Meu pai faleceu quando eu tinha treze anos, e minha mãe fechou-se em sua dor, deixando-me bastante sozinho por alguns anos. Quando por fim ela apareceu, foi mais como sedutora do que como cuidadora. Há muito sei que isso foi psicologicamente custoso, mas meu conhecimento é meramente intelectual. A intensidade do anseio com o qual essas perdas me deixaram e a raiva por ter sido abandonado pegaram-me de surpresa, quando interpretei o sonho.

 

SIMBOLISMO ONÍRICO

 

Desde o começo do seu trabalho com os sonhos, Freud estava interessado nos símbolos oníricos. Por exemplo, um rei e uma rainha em um sonho representam os pais do sonhador; o príncipe ou a princesa, o sonhador. Freud passou a ter a convicção de que os símbolos, particularmente os símbolos sexuais, podiam ser fidedignamente interpretados e podiam elucidar o conteúdo latente do sonho. Ele compreendeu o perigo: ao interpretar os símbolos, o intérprete corre o risco de impor suas fantasias sobre o sonhador; por outro lado, as interpretações geradas pela livre associação do sonhador pareciam mais confiáveis. Entretanto, Freud passou a acreditar que, apesar dos riscos, o modo mais poderoso de interpretar um sonho era combinar a livre associação do sonhador com o conhecimento a respeito de símbolos universais do intérprete.

Na primeira edição de A interpretação dos sonhos, havia muito pouca menção ao simbolismo. Em cada uma das duas edições seguintes, Freud deu maior atenção a esse assunto. Na quarta edição, havia uma seção inteira dedicada a ele, um tópico que Freud estudara a fundo e pelo qual se interessava muito. Seus escritos sobre o simbolismo revelam uma certa ambivalência. Por um lado, como estava preocupado em que a psicanálise não fosse vista como excêntrica ou ocultista, encontrava-se extremamente relutante, temendo dar a impressão de que estava escrevendo um novo “livro dos sonhos”. No tempo de Freud, como no nosso, havia livros que ensinavam o leitor a interpretar um sonho de modo a obter dele um conselho específico. O conselho poderia ser sobre amor ou negócios, ou praticamente sobre qualquer assunto; incluía previsões específicas sobre os resultados de um determinado empreendimento. Isso era feito por intermédio da tradução de certos símbolos. Por exemplo, em um desses livros, sonhar com uma carta significava perigo à frente. Funeral significava noivado. Se o sonho contivesse tanto uma carta quanto um funeral, o sonhador era instruído a juntar os dois símbolos e antever problemas para o noivado de alguém. Em certas subculturas americanas, esses livros ainda são comuns. Freqüentemente, eles trazem recomendações a respeito de decisões de jogo, embora, como os livros do século XIX, também forneçam conselhos para a vida. Ao menos desde a época de Freud, a maioria das pessoas educadas e certamente todos os cientistas avaliam que esses livros não passam de bobagens supersticiosas.

Freud estava ansioso por evitar qualquer alusão de que estivesse escrevendo mais um desses livros. Por outro lado, quanto mais ele estudava os símbolos nos sonhos, no folclore, nos dia letos populares e nas brincadeiras, mais se convencia de que tinha razão em conferir significado, particularmente significado sexual, aos símbolos oníricos. Objetos alongados referiam-se ao genital masculino; objetos rasos e receptivos, ao genital feminino e ao aparelho reprodutor; e subir degraus ou escadas, ao intercurso sexual.

Freud observou que não é difícil perceber como escalar pode representar copulação. Assinalou que, na escalada, chegamos ao topo em uma série de movimentos rítmicos, há uma crescente falta de ar e, depois, com alguns pulos ligeiros, chegamos embaixo mais uma vez. O padrão rítmico da copulação é reproduzido na subida da escada. (3)

A interpretação dos sonhos começou a incluir cuidadosa atenção às associações do sonhador, assim como uma cautelosa interpretação dos símbolos oníricos feita pelo analista. “Cautelosa” quer dizer que, embora os símbolos parecessem possuir um significado universal, ainda era importante prestar cuidadosa atenção ao contexto no qual o símbolo aparecia.

Nos dias que se sucederam à escrita da primeira parte deste capítulo, procurei exemplos de Freud sobre simbolismo onírico, mas não fiquei satisfeito com nenhum que encontrei. Então, meu inconsciente me favoreceu mais uma vez com um sonho relevante, este frouxamente vinculado aos personagens de uma ópera muito conhecida, A flauta mágica, de Mozart. Nessa ópera, Sarastro é o arquétipo do bom pai. Ele faz com que Tamino, o herói, e Pamina, a heroína, passem por algumas perigosas provações de iniciação, mas somente porque quer que eles o substituam como líderes da sua comunidade. Ele permite que Tamino toque a sua flauta mágica protetora, à medida que este e Pamina passam pelas provações. A ária principal de Sarastro diz respeito ao seu compromisso com o perdão e com a rejeição da vingança.

O sonho: estou andando por um campo perto de um rio, quando um homem se aproxima e me pede para ajudá-lo a consertar um complexo artefato composto de vários tipos de metal. Começo a desmontá-lo, tirando pinos, esperando ser capaz de lembrar de onde os tirei, quando chegar a hora de remontá-lo. Desmonto a maior parte dele e trabalho numa pequena parte de ferro fundido, cujo desmonte é um quebra-cabeça – uma parte tem de ser deslocada de um modo especial para que a outra parte se solte. Enquanto trabalho nessa parte, compreendo que estamos fazendo isso por Sarastro e vejo perto de nós a sua bandeira, que tem o formato de um chapéu cônico. Espero e escuto, esperando ouvir a grande ária de Sarastro sair da bandeira. Então compreendo que, quando era menino, Sarastro me levou para passear pelos campos nas proximidades. Consigo terminar de desmontar a parte restante, todas as peças caem no chão, e eu acordo.

Associações: A flauta mágica não é um símbolo fálico qualquer, mas um símbolo de um poderoso falo. A manipulação do quebra-cabeça é a masturbação. Sarastro fez a flauta mágica de uma árvore da floresta durante, creio, uma tempestade. Sarastro, o pai cuidador definitivo, é um amoroso líder filosófico que não acredita em vingança. Ele voluntariamente entrega sua flauta (= pênis) a Tamino e protege Pamina da mãe tenebrosa. Quando eu era menino, um dos meus verdadeiros pavores nos tempos que se seguiram à morte do meu pai era que agora não havia nada me separando da minha mãe. Tentei me trancar em um quarto, para evitar sua histeria. Conscientemente, para evitar sua histeria, e inconscientemente, estou certo, para evitar a súbita proximidade edipiana. Muitas vezes, minha mãe me parecia tenebrosa e perigosa. Gosto que me peçam ajuda. Sempre ajudo. Faz parte da necessidade de ser responsável. Tenho certeza que é um redutor da culpa e talvez da vergonha. Lembrome de certa vez em que estava dirigindo e me sentia chateado por algum ou outro motivo, quando o motorista de um carro me parou e me pediu informações, que eu pude fornecer. Meu humor melhorou consideravelmente depois disso.

 

Como em todos os sonhos, existem muitos significados que podem ser atribuídos. Adiante, uma possível interpretação.

 

Anseio por um pai que apoiará, em vez de desaprovar, a minha sexualidade: masturbação infantil e heterossexualidade adulta. Anseio por um pai que entusiasmadamente me tornará o herdeiro do seu poder fálico, um pai que perdoará de fato minha rivalidade, hostilidade e eventual (amargo) triunfo edipiano. Anseio por um pai que me protegerá da minha mãe tentadora e perigosa. Se eu for uma pessoa útil, talvez isso faça com que ele esteja mais disposto a me perdoar e apoiar.

Está claro por que Freud considerava que a interpretação dos sonhos era uma ferramenta de importância crucial no tratamento da neurose. A neurose é causada por um conflito inconsciente. Como esse conflito deve ser descoberto e revelado ao paciente? Embora fosse esperado que as livres associações do paciente sobre outras questões que não os sonhos revelassem muito a respeito do conflito, para Freud parecia haver apenas um caminho correto, “a estrada soberana”: interpretação dos sonhos.

O ESTADO ATUAL DA INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS

Um século após a publicação de A interpretação dos sonhos, a relação entre a psicanálise e a interpretação dos sonhos mudou amplamente. Muitos psicanalistas não mais consideram esta última um componente central do seu trabalho. O psicanalista Paul Lippman escreve que, exceto os seguidores de C. G. Jung, que continuam a enfatizar o trabalho com os sonhos, o caso de amor do analista com os sonhos parece ter acabado .(4) Ele atribui este fato às mudanças teóricas ocorridas, inclusive, por incrível que pareça, uma gradual redução da ênfase na revelação do inconsciente. Isso está associado com um movimento em direção a um tipo de terapia relacional, na qual o relacionamento entre o terapeuta e o cliente é examinado não tanto para revelar o inconsciente, mas para substituir essa revelação.

Lippman também atribui uma outra causa a esse afastamento dos sonhos. Ele diz que os analistas sempre foram ambivalentes quanto a trabalhar com sonhos. E assinala que Freud nos ensinou a interpretar os sonhos. Isso implicava uma obrigação de superar a censura onírica e solucionar o enigma onírico. Algumas vezes, freqüentemente de fato, a censura vence, forçando o analista a se retirar confuso ou encontrar um jeito de culpar o sonhador. Isso pode acabar fazendo com que o analista se sinta desconcertado e confuso. Não é surpresa, diz Lippman, que os analistas tenham ficado aliviados por terem uma boa razão para se libertar do fardo da interpretação dos sonhos.

Lippman acrescenta uma interessante especulação. Vivemos em uma época em que a cultura está se afastando do mundo natural em direção a um mundo virtual. Aparentemente, as telas externas estão se tornando mais interessantes para nós do que as internas. Os sonhos talvez sejam a mais interna de todas, de modo que o fato de os terapeutas psicodinâmicos estarem se afastando dos sonhos pode ser uma expressão da propagação do âmbito do mundo eletrônico.

Acredito que, para muitos psicoterapeutas das profundezas, o afastamento da interpretação dos sonhos não implica uma diminuição do interesse no processo inconsciente do cliente.

Embora alguns terapeutas relacionais estejam se afastando de uma ênfase na revelação do inconsciente do cliente, isso não e de modo algum verdadeiro para todos eles. Merton Gill. (5) o pai da terapia relacional, e Heinz Kohut, (6) fundador da escola da psicologia do self, estavam ambos firmemente convencidos da importância de trazer à superfície as raízes antigas e encobertas dos problemas existenciais do cliente. Muitos dos seus descendentes contemporâneos ainda se mantêm comprometidos com isso.

Freud estava tão convicto de serem os sonhos a estrada soberana para o inconsciente, que certamente ficaria entristecido de ver a interpretação dos sonhos desaparecer da atual tendência da prática clínica. Mas ocorre que os sonhos não são de modo algum a única estrada soberana, e talvez não sejam nem mesmo a mais confiável. Há muito que se aprender sobre os processos inconscientes do cliente, atentando para os detalhes de suas histórias, dos padrões sutis de suas vidas e dos modos como constroem a relação com o terapeuta.

Entretanto, os terapeutas psicodinâmicos provavelmente se precipitaram ao se afastarem dos sonhos. A reflexão sobre eles enriquece a nossa vida e o nosso trabalho clínico. É lamentável, como diz Lippman, que os psicanalistas tenham desenvolvido a compreensão equivocada de que cada sonho encobre um significado ao qual se deve chegar rapidamente, para que o analista pareça competente. Isso faz com que tanto o sonhador quanto o ouvinte se afastem rapidamente demais do sonho em si. Há muito proveito em ponderar ludicamente sobre as imagens manifestas. No primeiro sonho descrito linhas atrás, eu poderia ter gasto mais tempo no jogo de futebol e no meu arrependimento por ter abandonado a carreira de jogador universitário. Poderia ter explorado meus sentimentos a respeito de trabalhar cercado de muitas mulheres atraentes. Minha atração pelos versos de Shadowlands parece muito promissora. A interpretação a que cheguei é sem dúvida reveladora e proveitosa, mas pode ser apenas o começo de uma escavação das riquezas do sonho.

É improvável que a interpretação dos sonhos venha a ocupar novamente um lugar central na psicoterapia profunda, exceto naquela praticada pelos junguianos. Para eles, a estrada soberana conduz a mais do que apenas o inconsciente individual do paciente. Como acreditam que todos compartilhamos um “inconsciente coletivo” universal, eles vêem o simbolismo onírico como indício necessário dos aspectos desse inconsciente coletivo, que estão influenciando o paciente agora.(7)

Apesar de muitos terapeutas não-junguianos se afastarem da interpretação dos sonhos, parece provável que sempre haverá terapeutas psicodinâmicos de todas as escolas que continuarão fascinados pelos sonhos e considerarão produtivo trabalhar com eles. Talvez os sonhos não sejam a estrada soberana para o inconsciente, ou pelo menos não a única. Entretanto, contêm riquezas significativas. Quando um sonho (nosso ou do cliente) é explorado, menos como um código desafiador e mais como um poderoso poema pessoal, explorado ludicamente e sem uma preocupação específica pelo seu significado, pode ser esclarecedor e enriquecedor.

 

4. Freud: A consciência pode conhecer tudo? – Marilena Chauí

(Fonte: Filosofia, Ed. Ática, São Paulo,  ano 2000, pág. 83-87)

 

Freud escreveu que, no transcorrer da modernidade, os humanos foram feridos três vezes e que as feridas atingiram o nosso narcisismo, isto é, a bela imagem que possuíamos de nós mesmos como seres conscientes racionais e com a qual, durante séculos, estivemos encantados.  Que feridas foram essas?

A primeira foi a que nos infligiu Copérnico, ao provar que a Terra não estava no centro do  Universo e que os homens não eram o centro do mundo.  A segunda foi causada por Darwin, ao provar que os homens descendem de um primata, que são apenas um elo na evolução das espécies e não seres especiais, criados por Deus para dominar a Natureza.  A terceira foi causada por Freud com a psicanálise, ao mostrar que a consciência é a menor parte e a mais fraca de nossa vida psíquica.

Na obra Cinco ensaios sobre a psicanálise, Freud escreve:

 

“A Psicanálise propõe mostrar que o Eu não somente não é senhor na sua própria casa, mas também está reduzido a contentar-se com informações raras e fragmentadas daquilo que se passa fora da consciência, no restante da vida psíquica… A divisão do psíquico num psíquico consciente e num psíquico inconsciente constitui a premissa fundamental da psicanálise, sem a qual ela seria incapaz de compreender os processos patológicos, tão freqüentes quanto graves, da vida psíquica e fazê-los entrar no quadro da ciência… A psicanálise se recusa a considerar a consciência como constituindo a essência da vida psíquica, mas nela vê apenas uma qualidade desta, podendo coexistir com outras qualidades e até mesmo faltar. ”

 

A psicanálise – Freud era médico psiquiatra.  Seguindo os médicos de sua época, usava a hipnose e a sugestão no tratamento dos doentes mentais, mas sentia-se insatisfeito com os resultados obtidos.

 

Certa vez, recebeu uma paciente, Ana O., que apresentava sintomas de histeria, isto é, apresentava distúrbios físicos (paralisias, enxaquecas, dores de estômago) sem que houvesse causas físicas para eles, pois eram manifestações corporais de problemas psíquicosEm lugar de usar a hipnose e a sugestão, Freud usou um procedimento novo: fazia com que Anna relaxasse num divã e falasse. Dizia a ela palavras soltas e pedia-lhe que dissesse a primeira palavra que lhe viesse à cabeça ao ouvir a que ele dissera – posteriormente, Freud denominaria esse procedimento de “técnica de associação livre”.

 

Freud percebeu que, em certos momentos, Anna reagia a certas palavras e não pronunciava aquela que lhe viera à cabeça, censurando-a por algum motivo ignorado por ela e por ele. Notou também que, em outras ocasiões, depois de fazer a associação livre de palavras, Anna ficava muito agitada e falava muito. Observou que, certas vezes, algumas palavras a faziam chorar sem motivo aparente e, outras vezes, a faziam lembrar-se de fatos da infância, narrar um sonho que tivera na noite anterior. Pela conversa, pelas reações da paciente, pelos sonhos narrados e pelas lembranças infantis, Freud descobriu que a vida consciente de Anna era determinada por uma vida inconsciente, que tanto ela quanto ele desconheciam. Compreendeu também que somente interpretando as palavras, os sonhos, as lembranças e os gestos de Anna chegaria a essa vida inconsciente.

 

Freud descobriu, finalmente, que os sintomas histéricos tinham três finalidades:

 

  1. 1.  contar indiretamente aos outros e a si mesma os sentimentos inconscientes;
  2. 2.  punir-se por ter tais sentimentos;
  3. realizar, pela doença e pelo sofrimento, um desejo inconsciente intolerável.

 

Tratando de outros pacientes, Freud descobriu que, embora conscientemente quisessem a cura, algo neles criava uma barreira, uma resistência inconsciente à cura.

Por quê?  Porque os pacientes sentiam-se interiormente ameaçados por alguma coisa dolorosa e temida, algo que haviam penosamente esquecido e que não suportavam lembrar. Freud descobriu, assim, que o esquecimento consciente operava simultaneamente de duas maneiras:

 

  1. 1.  como resistência à terapia;
  2. sob a forma da doença psíquica, pois o inconsciente não esquece e obriga o esquecido a reaparecer sob a forma dos sintomas da neurose e da psicose.

 

Desenvolvendo com outros pacientes e consigo mesmo esses procedimentos e novas técnicas de interpretação de sintomas, sonhos, lembranças, esquecimentos, Freud foi criando o que chamou de análise da vida psíquica ou psicanálise, cujo objeto central era o estudo do inconsciente e cuja finalidade era a cura de neuroses e psicoses, tendo como método a interpretação e como instrumento a linguagem (tanto a linguagem verbal das palavras quanto a linguagem corporal dos sintomas e dos gestos).

 

A vida psíquica – Durante toda sua vida, Freud não cessou de reformular a teoria psicanalítica, abandonando alguns conceitos, criando outros, abandonando algumas técnicas terapêuticas e criando outras.  Não vamos, aqui, acompanhar a história da formação da psicanálise, mas apresentar algumas de suas principais idéias e inovações.

 

A vida psíquica é constituída por três instâncias, duas delas inconscientes e apenas uma consciente: o id, o superego e o ego (ou o isso, o super-eu e o eu).  Os dois primeiros são inconscientes; o terceiro, consciente. (observação importante do prof. Laerte: tem também o aspecto inconsciente manifestado por exemplo pelos mecanismos de defesa)

 

O id é formado por instintos, impulsos orgânicos e desejos inconscientes, ou seja, pelo que Freud designa como pulsões.  Estas são regidas pelo princípio do prazer, que exige satisfação imediata.  O id é a energia dos instintos e dos desejos em busca da realização desse  princípio do prazer.  É a libido. 

 

Instintos, impulsos e desejos, em suma, as pulsões, são de natureza sexual e a sexualidade não se reduz ao ato sexual genital, mas a todos os desejos que pedem e encontram satisfação na totalidade de nosso corpo.

 

Freud descobriu três fases da sexualidade humana que se diferenciam pelos órgãos que sentem prazer e pelos objetos ou seres que dão prazer. Essas fases se desenvolvem entre os primeiros meses de vida e os 5 ou 6 anos, ligadas ao desenvolvimento do id:

 

  1. a fase oral, quando o desejo e o prazer localizam-se primordialmente na boca e na ingestão de alimentos e o seio materno, a mamadeira, a chupeta, os dedos são objetos do prazer;
  2. a fase anal, quando o desejo e o prazer localizam-se primordialmente nas excreções e as fezes, brincar com massas e com tintas, amassar barro ou argila, comer coisas cremosas, sujar-se são os objetos do prazer;
  3. e a fase genital ou fase fálica, quando o desejo e o prazer localizam-se primordialmente nos órgãos genitais e nas partes do corpo que excitam tais órgãos. Nessa fase, para os meninos, a mãe é o objeto do desejo e do prazer; para as meninas, o pai.

 

No centro do id, determinando toda a vida psíquica, encontra-se o que Freud denominou de complexo de Édipo, isto é, o desejo incestuoso pelo pai ou pela mãe. É esse o desejo fundamental que organiza a totalidade da vida psíquica e determina o sentido de nossas vidas. O superego, também inconsciente, é a censura das pulsões que a sociedade e a cultura impõem ao id, impedindo-o de satisfazer plenamente seus instintos e desejos. É a repressão, particularmente a sexual. Manifesta-se à consciência indiretamente, sob a forma da moral, como um conjunto de interdições e de deveres, e por meio da educação, pela produção da imagem do “eu ideal” isto é, da pessoa moral, boa o virtuosa. O superego ou censura desenvolve-se num período que Freud designa como período de latência, situado entre os 6 ou 7 anos e o início da puberdade ou adolescência. Nesse período, forma-se nossa personalidade moral e social, de maneira que, quando a sexualidade genital ressurgir, estará obrigada a seguir o caminho traçado pelo superego.

 

O ego ou o eu é a consciência (observação do prof. Laerte: mas também marcado pelo inconsciente), pequena parte da vida psíquica, submetida aos desejos do id e à repressão do superego. Obedece ao princípio da realidade, ou seja, à necessidade de encontrar objetos que possam satisfazer ao id sem transgredir as exigências do superego. O ego, diz Freud, é “um pobre coitado”, espremido entre três escravidões:

 

  1. os desejos insaciáveis do id,
  2. a severidade repressiva do superego
  3. e os perigos do mundo exterior.

 

Por esse motivo, a forma fundamental da existência para o ego é a angústia.  Se se submeter ao id, torna-se imoral e destrutivo; se se submeter ao superego, enlouquece de desespero, pois viverá numa insatisfação insuportável; se não se submeter à realidade do mundo, será destruído por ele. Cabe ao ego encontrar caminhos para a angústia existencial. Estamos divididos entre o princípio do prazer (que não conhece limites) e o princípio da realidade (que nos impõe limites externos e internos).

 

Ao ego-eu, ou seja, à consciência, é dada uma função dupla: ao mesmo tempo recalcar o id, satisfazendo o superego, e satisfazer o id, limitando o poderio do superego. A vida consciente normal é o equilíbrio encontrado pela consciência para realizar sua dupla função. A loucura (neuroses e psicoses) é a incapacidade do ego para realizar sua dupla função, seja porque o id ou o superego são excessivamente fortes, seja porque o ego é excessivamente fraco.

 

O inconsciente, em suas duas formas, está impedido de manifestar-se diretamente à consciência, mas consegue fazê-lo indiretamente.  A maneira mais eficaz para a manifestação é a substituição, isto é, o inconsciente oferece à consciência um substituto aceitável por ela e por meio do qual ela pode satisfazer o id ou o superego. Os substitutos são imagens (isto é, representações analógicas dos objetos do desejo) e formam o imaginário psíquico, que, ao ocultar e dissimular o verdadeiro desejo, o satisfaz indiretamente por meio de objetos substitutos (a chupeta e o dedo, para o seio materno; tintas e pintura ou argila e escultura para as fezes, uma pessoa amada no lugar do pai ou da mãe).

 

Além dos substitutos reais (chupeta, argila, pessoa amada), o imaginário inconsciente também oferece outros substitutos, os mais freqüentes sendo os sonhos, os lapsos e os atos falhos. Neles, realizamos desejos inconscientes, de natureza sexual. São a satisfação imaginária do desejo.

 

Alguém sonha, por exemplo, que sobe uma escada, está num naufrágio ou num incêndio. Na realidade, sonhou com uma relação sexual proibida. Alguém quer dizer uma palavra, esquece-a ou se engana, comete um lapso e diz uma outra que nos surpreende, pois nada tem a ver com aquela que se queria dizer.  Realizou um desejo proibido. Alguém vai andando por uma rua e, sem querer, torce o pé e quebra o objeto que estava carregando. Realizou um desejo proibido.

 

A vida psíquica dá sentido e coloração afetivo sexual a todos os objetos e a todas as pessoas que nos rodeiam e entre os quais vivemos. Por isso, sem que saibamos por que, desejamos e amamos certas coisas e pessoas, odiamos e tememos outras. As coisas e os outros são investidos por nosso inconsciente com cargas afetivas de libido. É por esse motivo que certas coisas, certos sons, certas cores, certos animais, certas situações nos enchem de pavor, enquanto outros nos enchem de bem-estar, sem que o possamos explicar.  A origem das simpatias e antipatias, amores e ódios, medos e prazeres está em nossa mais tenra infância, em geral nos primeiros meses e anos de nossa vida, quando se formam as relações afetivas fundamentais e o complexo de Édipo.

 

Essa dimensão imaginária de nossa vida psíquica – substituições, sonhos, lapsos, atos falhos, prazer e desprazer com objetos e pessoas, medo ou bem-estar com objetos ou pessoas – indica que os recursos inconscientes para surgir indiretamente à consciência possuem dois níveis:

 

–         o nível do conteúdo manifesto (escada, mar e incêndio, no sonho; a palavra esquecida e a pronunciada, no lapso; pé torcido ou objeto partido, no ato falho; afetos contrários por coisas e pessoas)

–         e o nível do conteúdo latente, que é o conteúdo inconsciente real e oculto (os desejos sexuais).

 

Nossa vida normal se passa no plano dos conteúdos manifestos e, portanto, no imaginário.  Somente uma análise psíquica e psicológica desses conteúdos, por meio de técnicas especiais (trazidas pela psicanálise), nos permite decifrar o conteúdo latente que se dissimula sob o conteúdo manifesto.

 

Além dos recursos individuais cotidianos; que nosso inconsciente usa para manifestar-se, e além dos recursos extremos e dolorosos usados na loucura (nela, os recursos são os sintomas), existe um outro recurso, de enorme importância para a vida cultural e social, isto é, para a existência coletiva.  Trata-se do que Freud designa com o nome de sublimação.

 

Na sublimação, os desejos inconscientes são transformados em uma outra coisa, exprimem-se pela criação de uma outra coisa: as obras de arte, as ciências, a religião, a filosofia, as técnicas, as instituições sociais e as ações políticas. Artistas, místicos, pensadores, escritores, cientistas, líderes políticos satisfazem seus desejos pela sublimação e, portanto, pela realização de obras e pela criação de instituições religiosas, sociais, políticas, etc.

 

Porém, assim como a loucura é a impossibilidade do ego para realizar sua dupla função, também a sublimação pode não ser alcançada e, em seu lugar, surgir uma perversão social ou coletiva, uma loucura social ou coletiva. O nazismo é um exemplo de perversão, em vez de sublimação. A propaganda, que induz em nós falsos desejos sexuais pela multiplicação das imagens de prazer, é outro exemplo de perversão ou de incapacidade para a sublimação.

 

O inconsciente, diz Freud, não é o subconsciente.  Este é aquele grau da consciência como consciência passiva e consciência vivida não-reflexiva, podendo tornar-se plenamente consciente. O inconsciente, ao contrário, jamais será consciente diretamente, podendo ser captado apenas indiretamente e por meio de técnicas especiais de interpretação desenvolvidas pela psicanálise.

 

A psicanálise descobriu, assim, uma poderosa limitação às pretensões da consciência para dominar e controlar a realidade e o conhecimento. Paradoxalmente, porém, nos revelou a capacidade fantástica da razão e do pensamento para ousar atravessar proibições e repressões e buscar a verdade, mesmo que para isso seja preciso desmontar a bela imagem que os seres humanos têm de si mesmos.

 

Longe de desvalorizar a teoria do conhecimento, a psicanálise exige do pensamento que não faça concessões às idéias estabelecidas, à moral vigente, aos preconceitos e às opiniões de nossa sociedade, mas que os enfrente em nome da própria razão e do pensamento.

 

A consciência é frágil, mas é ela que decide e aceita correr o risco da angústia e o risco de desvendar e decifrar o inconsciente. Aceita e decide enfrentar a angústia para chegar ao conhecimento de que somos um caniço pensante, como disse o filósofo Pascal.

5.  Freud – …. um desejo terrível, egoísta, veio à tona dentro dela…

(Do livro: “O mundo de Sofia”, Jostein Gaarder, Cia de Letras,1995, pág. 458-475)

 

Alberto –  Hoje vou contar a você sobre Freud e sua teoria do inconsciente.

 

Sentaram-se à janela.  Sofia olhou para o relógio e disse:

 

Sofia – Já são duas e meia e eu ainda preciso providenciar algumas coisas para a festa.

Alberto – Eu também.  Vamos falar rapidamente sobre Sigmund Freud.

Sofia – Ele foi um filósofo?

Alberto – Podemos chamá-lo de um filósofo da cultura. Freud nasceu em 1856 e estudou medicina na Universidade de Viena.  Passou a maior parte de sua vida naquela cidade, justamente durante um período em que a vida cultural vienense experimentou uma fase de apogeu.  Desde cedo, Freud se especializou num ramo da medicina que chamamos de neurologia.  De fins do século passado até quase meados do nosso século, ele trabalhou na elaboração de sua psicologia profunda ou psicanálise.

Sofia – Explique melhor.

Alberto – Por psicanálise entende-se tanto a descrição da mente, da psique humana em geral, quanto um método de tratamento para distúrbios nervosos e psíquicos.  Não pretendo fazer uma explanação detalhada sobre Freud e sua obra, mas é preciso conhecer um pouco de sua teoria do inconsciente, se quisermos entender o que é o ser humano.

Sofia – Você já conseguiu despertar meu interesse.  Vamos lá!

Alberto – Freud achava que sempre havia uma tensão entre o homem e o seu meio.  Para ser mais exato, uma tensão, ou um conflito, entre o próprio homem e aquilo que seu meio exigia dele.  Não seria exagerado dizer que Freud descobriu o universo dos impulsos que regem a vida do homem.  E isto faz dele um legítimo representante das correntes naturalistas, tão importantes em fins do século passado.

Sofia – O que se entende por “impulso” do homem?

AlbertoNem sempre é a razão que governa nossas ações.  Consequentemente, o homem não é apenas o ser racional tão defendido pelos racionalistas do século XVIII. Com freqüência, impulsos irracionais determinam nossos pensamentos, nossos sonhos e nossas ações. Tais impulsos irracionais são capazes de trazer à luz instintos e necessidades que estão profundamente enraizados dentro de nós. Tão básico quanto a necessidade que um bebê tem de mamar seria, por exemplo, o impulso sexual do homem.

Sofia – Entendo.

Alberto – Talvez tudo isto não tivesse nada de novo em si. Mas Freud mostrou que essas necessidades básicas podiam vir à tona disfarçadas e tão modificadas que não seríamos capazes de reconhecer sua origem.  Assim disfarçadas, elas governariam nossas ações, sem que tivéssemos consciência disso.  Além disso, Freud mostrou que as crianças também têm uma espécie de sexualidade.  A afirmação da existência de uma sexualidade infantil causou repulsa entre os refinados cidadãos de Viena e fez de Freud um homem extremamente impopular.

Sofia – Não me surpreende.

Alberto – Estamos falando de uma época na qual tudo o que tinha a ver com a sexualidade era tabu. Freud chegara à conclusão da existência de uma sexualidade infantil por meio de sua prática como psicoterapeuta. Ele tinha, portanto, uma sólida base empírica para fundamentar suas afirmações.  Freud também constatou que muitas formas de distúrbios psíquicos eram devidas a conflitos ocorridos na infância.  Aos poucos, então, Freud foi desenvolvendo um método de tratamento que podemos chamar de uma espécie de “arqueologia da alma”.

Sofia – O que você quer dizer com isso?

Alberto – O psicanalista pode “cavoucar” a mente do paciente, com a ajuda dele, é claro, a fim de trazer à luz as experiências e vivências que, em algum momento da vida passada, provocaram seu distúrbio psíquico.  Para Freud, portanto, guardamos bem no fundo de nós todas as lembranças do passado.

Sofia – Agora estou entendendo.

Alberto – E pode ser que neste processo o terapeuta encontre uma experiência ruim que o paciente sempre tentou esquecer, mas que está bem viva e presente dentro dele e lhe rouba as forças. No momento em que tal “experiência traumática” é trazida ao consciente e o paciente tem a chance de encará-la de frente, por assim dizer, ele pode “se entender” com ela e se curar.

Sofia – Isto parece lógico.

Alberto – Mas estou avançando rápido demais.  Vamos ver primeiro como Freud descreve a psique humana. Você já viu um recém-nascido?

Sofia – Tenho um primo de quatro anos.

Alberto – Quando vêm ao mundo, os bebês satisfazem suas necessidades físicas e psíquicas de forma bastante direta e desinibida.  Se estão com fome, choram.  E também choram quando estão com a fralda molhada ou quando querem deixar bem claro que querem um pouco de calor humano e contato físico.  Freud chama de id este “princípio do prazer” que existe em nós.  Quando somos recém-nascidos, quase todo o nosso ser é apenas um id.

Sofia – Prossiga.

Alberto – O id continua conosco na idade adulta e nos acompanha a vida toda. Só que aos poucos vamos aprendendo a controlar nossos desejos a fim de nos adaptarmos ao nosso meio. Em outras palavras, aprendemos a afinar nosso princípio de prazer com o princípio da realidade. Freud diz que construímos um ego e que este ego assume esta função reguladora. A partir de certa idade, embora tenhamos prazer em alguma coisa, não podemos simplesmente sentar e abrir o berreiro até que nossos desejos ou necessidades sejam satisfeitos.

Sofia – É claro que não.

Alberto – Mas pode acontecer de nós desejarmos intensamente alguma coisa que nosso meio não aceita. O que acontece é que muitas vezes reprimimos nossos desejos.  Quer dizer, tentamos colocá-los de lado e esquecê-los.

Sofia – Entendo.

Alberto – Mas Freud aponta também uma terceira instância na psique humana: ainda crianças, somos confrontados com os padrões morais de nossos pais e de nosso meio.  Quando fazemos alguma coisa de errado, nossos pais dizem “Não faça isto!”, ou então “Que vergonha!”.  E mesmo depois de adultos podemos ouvir o eco de tais repreensões e julgamentos morais.  As expectativas de nosso meio no plano da moral parecem ter se alojado dentro de nós e passado a constituir uma parte de nós mesmos. É isto que Freud chama de superego.

SofiaSuperego seria para ele sinônimo de consciência?

Alberto – Numa passagem, Freud chega a dizer textualmente que o superego se opõe ao ego como uma espécie de consciência. Na verdade, porém, trata-se do seguinte: o superego nos informa, por sim dizer, quando nossos desejos são “sujos” ou “impróprios”, e vale especialmente para os desejos eróticos ou sexuais. Como eu já disse, Freud constatou que tais desejos surgem bem cedo na infância.

Sofia – Me explique melhor, por favor.

Alberto – Hoje em dia sabemos e vemos que os bebês gostam de brincar com seus órgãos genitais.  Podemos ver isto, por exemplo, quando vamos à praia ou à piscina.  Na época de Freud, a criança de dois ou três anos que fizesse  isto na frente dos outros ganhava um belo tapa na mão. Naquela época, era comum as crianças ouvirem frases tais como: “Que coisa mais feia!”, ou “Não faça isso!”, ou ainda “Deixe as mãos para fora das cobertas!”.

Sofia – Revoltante…

Alberto – Dessa forma, as pessoas desenvolvem um sentimento de culpa.  E como este sentimento de culpa é armazenado no superego, para muitas pessoas, e Freud acreditava que para a maioria delas, ele fica indissociavelmente atrelado a tudo o que diz respeito ao sexo.  Ao mesmo tempo, Freud chamava a atenção para o fato de os desejos e necessidades sexuais serem uma parte natural e importante da natureza humana. E assim, minha cara Sofia, temos aqui todos os elementos de que necessitamos para um conflito entre prazer e culpa que pode nos acompanhar por toda a vida.

Sofia – Você não acha que este conflito diminuiu um pouco desde a época de Freud?

Alberto – Certamente.  Mas muitos dos pacientes de Freud viviam este conflito de forma tão intensa que chegaram a desenvolver o que Freud chamou de neuroses. Uma de suas pacientes, por exemplo, apaixonou-se por seu cunhado. Quando sua irmã morreu ainda jovem, vítima de uma enfermidade, ela pensou junto ao leito de morte da irmã: “Agora ele está livre e pode se casar comigo!”. Este pensamento naturalmente entrou em conflito direto com o seu superego.  Era um pensamento tão hediondo que ela o reprimiu, como Freud diz.  Quer dizer, ela o enterrou no inconsciente.  Depois, aquela jovem senhora ficou doente e passou a apresentar sérios sintomas de histeria.  E quando Freud assumiu o tratamento dela, ficou claro que ela tinha se esquecido completamente da cena junto ao leito de morte de sua irmã e do desejo terrível, egoísta, que sentira vir à tona dentro de si.  Durante o tratamento, a paciente voltou a se lembrar da cena, reviveu aquele momento que era a causa de sua enfermidade e ficou curada.

Sofia  – Agora eu estou começando a entender o que você queria dizer com “arqueologia da alma”.

Alberto – Então vamos arriscar uma descrição bem genérica da psique humana. Após um longo período de experiência com pacientes, Freud chegou à conclusão de que a consciência humana era apenas uma pequena parte da psique.  A consciência seria mais ou menos como a ponta de um iceberg que se eleva para além da superfície da água.  Sob a superfície, ou sob o limiar da consciência, está o inconsciente.

Sofia – Quer dizer que o inconsciente é tudo de que nós nos esquecemos, mas que continua dentro de nós?

Alberto – Não podemos ter presente em nossa consciência, o tempo todo, todas as experiências que vivemos.  Mas tudo o que pensamos ou vivemos e tudo de que nos lembramos quando pomos a cabeça para funcionar Freud chama de “pré-consciente”.  A expressão “inconsciente” significa, para Freud, tudo o que reprimimos.  Quer dizer, tudo de que nós queremos nos esquecer a qualquer preço porque consideramos desagradável, indecoroso ou repulsivo.  Quando temos desejos e prazeres que para nossa consciência, ou para nosso superego, são insuportáveis, nós simplesmente as enfiamos no porão do inconsciente e assim nos livramos deles.

Sofia – Entendo.

AlbertoEste mecanismo funciona em todas as pessoas sadias. Para algumas pessoas, porém, o ato de banir tais pensamentos desagradáveis ou proibidos é algo tão estressante que elas ficam doentes. É que aquilo que foi reprimido desta forma continua tentando emergir para o nível da consciência, de sorte que cada vez mais energia é despendida para se manter tais impulsos longe da crítica do consciente.  Em 1909, quando Freud proferiu algumas palestras nos Estados Unidos sobre a psicanálise, ele ilustrou com um exemplo muito simples o funcionamento desse mecanismo de repressão.

Sofia – Que exemplo foi este?

Alberto – Ele pediu aos ouvintes que imaginassem que no auditório havia um indivíduo que perturbava a ordem e desconcentrava o orador rindo às gargalhadas, conversando com seus vizinhos e arrastando e batendo os pés no chão.  Chegaria, então, um momento em que o orador não poderia continuar a falar. Nesse momento, alguns homens fortes provavelmente se levantariam e, depois de uma breve discussão, colocariam o elemento perturbador porta afora, no corredor.  O indivíduo seria “reprimido”, portanto, e o orador poderia continuar com sua palestra. Mas para evitar que o elemento perturbador tentasse forçar sua entrada de novo no auditório, os mesmos homens que o tinham colocado para fora levariam suas cadeiras até à porta e funcionariam como uma espécie de resistência para garantir a repressão.  Freud concluiu dizendo que se os ouvintes imaginassem o auditório como o “consciente” e o corredor como o “inconsciente”, teriam uma boa imagem de como funciona o processo de repressão.

Sofia – Também acho que a imagem é boa.

Alberto – Uma coisa é certa: o elemento perturbador vai querer entrar novamente na sala de conferências, Sofia. Em todo caso, é isto o que querem nossos pensamentos e impulsos reprimidos. Vivemos sob a constante pressão de pensamentos reprimidos, que tentam se libertar do inconsciente. Por isso é que muitas vezes dizemos e fazemos coisas que na verdade “não tínhamos a intenção de fazer”.  Dessa forma, o inconsciente também pode guiar nossos sentimentos e ações.

Sofia – Você poderia me dar um exemplo?

Alberto – Freud descreve vários desses mecanismos.  Um deles é o chamado ato falho, ou seja, algo que dizemos ou fazemos espontaneamente e que um dia tínhamos reprimido.  Ele faia, por exemplo, de um empregado que foi escolhido para fazer um brinde ao seu chefe, de quem ninguém gostava.

Sofia – Sim?

Alberto – O empregado se levantou, ergueu o copo e disse: “Convido todos a arrotarem em homenagem a nosso chefe!”.

Sofia – Legal!

Alberto – Não foi o que o chefe achou.  Ao dizer isto, o empregado simplesmente tinha expressado o que realmente achava de seu chefe.  Talvez nunca tivesse ousado dizê-lo abertamente a ele.  Você quer mais um exemplo?

Sofia – Sim.

Alberto – Certo dia, o bispo foi visitar a família de um pastor, que era pai de umas meninas adoráveis e muito comportadas.  Este bispo tinha um nariz enorme, fora do comum. O pastor teve o cuidado, então, de pedir às suas filhas que não mencionassem nada a respeito do nariz do bispo. É que as crianças geralmente começam a rir quando percebem essas coisas, pois ainda não têm o mecanismo de repressão muito bem desenvolvido.

Sofia – E o que aconteceu?

Alberto – O bispo veio até à paróquia e as meninas, absolutamente deliciadas com a situação, faziam todo o esforço possível para não dizer nada a respeito do nariz. E mais: elas não podiam sequer ficar olhando para o nariz. Tinham de esquecê-lo completamente. Só que elas ficavam pensando no nariz do bispo o tempo todo. E quando chegou a hora de a menorzinha oferecer ao honorável bispo açúcar para o café, ela disse: “O senhor aceita um pouco de açúcar no nariz?”.

Sofia – Putz!

Alberto – Às vezes nós também racionalizamos, quer dizer, tentamos mostrar a nós mesmos, e aos outros, que temos outros motivos para fazer o que fazemos em certas situações, e não revelamos os reais motivos que nos levaram a agir de certa maneira, simplesmente porque eles são constrangedores demais.

Sofia – Um exemplo, por favor.

Alberto – Posso hipnotizar você e induzi-la a abrir a janela.  Para tanto, ordeno a você que se levante e abra a janela quando eu tamborilar com os dedos sobre a mesa, por exemplo. Quando eu faço isto, você se levanta e abre a janela.  Depois pergunto a você por que você abriu a janela.  Talvez você me responda que o fez porque estava muito quente aqui dentro.  Mas este não é o verdadeiro motivo. Você não quer admitir para si mesma que obedeceu à minha ordem enquanto estava hipnotizada. E o que você faz?  Você “racionaliza”, Sofia.

Sofia – Entendo.

Alberto – Coisas como esta acontecem quase todos os dias quando nos relacionamos com os outros.

Sofia – Eu já disse a você que tenho um priminho de quatro anos.  Acho que ele não têm muitos amigos para brincar, pois ele sempre fica muito contente quando eu vou visitá-lo.  Certa vez eu disse que precisava voltar logo para casa, pois minha mãe estava me esperando.  E sabe o que ele me disse?

Alberto – Não.

Sofia – “Sua mãe é uma chata”, foi isso o que disse.

Alberto – Sim, este é um bom exemplo para o que entendemos por racionalizar. O menino realmente não quis dizer que sua mãe é uma chata. Ele quis dizer que achava chato que você tivesse de ir embora. Só que para ele não era muito fácil verbalizar isto.  Outra coisa que pode acontecer é que nós projetamos.

Sofia – Traduza, por favor.

Alberto – Quando projetamos alguma coisa estamos transferindo a outros as características que tentamos reprimir em nós mesmos. Uma pessoa avarenta, por exemplo, gosta de ficar dizendo que os outros são avarentos. Alguém que não quer admitir que pensa muito em sexo geralmente é o primeiro a se irritar quando encontra outras pessoas fissuradas por sexo.

Sofia – Entendo.

Alberto – Freud dizia que nossa vida cotidiana está repleta de tais ações inconscientes. Muitas vezes nos esquecemos do nome de certa pessoa, ficamos mexendo numa pontinha de nossa roupa enquanto estamos falando ou então ficamos mudando de posição objetos aparentemente sem importância.  Ou podemos tropeçar em nossas próprias palavras e acabar trocando letras e nomes, que à primeira vista podem parecer totalmente inocentes, mas que na verdade não são. Freud pelo menos não considera essas coisas tão inocentes e casuais como podemos achar. Ele acha que elas deveriam ser encaradas como sintomas.  Para ele, esses atos falhos podem nos revelar segredos os mais íntimos.

Sofia – Daqui para a frente, vou prestar bastante atenção em cada palavra que disser.

Alberto – Mesmo assim, você não poderá escapar de seus impulsos inconscientes.  O segredo está em não se desgastar demais ao se empurrar as coisas desagradáveis para o subconsciente. É como querer tapar o buraco de uma toupeira. Você pode até conseguir, mas com certeza ela virá à superfície em algum outro ponto. O mais sadio é deixar só encostada a porta entre o consciente e o subconsciente.

Sofia – Se trancarmos a porta à chave podemos provocar distúrbios psíquicos em nós mesmos?

Alberto – Sim.  Um neurótico é justamente alguém que despende energia demais na tentativa de banir de seu consciente tudo aquilo que o incomoda. Com freqüência trata-se de reprimir experiências bem específicas.  São as chamadas “experiências traumáticas”, que eu já mencionei no início da nossa conversa, talvez um pouco cedo demais.  Freud as chama de traumas.  A palavra “trauma” é grega e significa “ferida”.

Sofia – Entendo.

Alberto – Em seus tratamentos, às vezes Freud tentava abrir cuidadosamente estas portas trançadas; outras vezes, procurava abrir outra porta. Com a colaboração do paciente, ele tentava trazer à tona novamente as experiências reprimidas. Isto porque o paciente não tem consciência de que as reprimiu. Não obstante, ele deseja que o médico, ou o analista, como se diz em psicanálise, o ajude a encontrar um caminho que o leve a seus traumas escondidos.

Sofia – E como o médico procede neste caso?

Alberto – Freud chamava este procedimento de técnica da livre associaçãoIsto significa que ele deixava o paciente deitado, bem relaxado, falando apenas sobre coisas que lhe viessem à cabeça, por mais irrelevantes, casuais, desagradáveis ou penosas que elas lhe fossem. Para o analista, as associações do paciente no divã trazem indícios de seus traumas e das resistências que impedem a conscientização.  Pois são exatamente os traumas que ocupam os pacientes o tempo todo, só que não de forma consciente.

Sofia – Quer dizer que quanto mais a gente se esforça para esquecer uma coisa, mais a gente pensa inconscientemente nela?

Alberto – Exatamente.  Por isso é importante prestar atenção aos sinais do inconsciente.  Para Freud, o “caminho real” que leva para o inconsciente passa pelos sonhos.  Por esta razão, uma de suas mais importantes obras é o livro A interpretação dos sonhos, publicado em 1900.  Nele, Freud mostra que nossos sonhos não são meros acasos.  Por meio dos sonhos, nossos pensamentos inconscientes tentam se comunicar com nosso consciente.

Sofia – Continue.

Alberto – Após longos anos de experiências acumuladas no trabalho corri seus pacientes, e também depois de ter analisado os seus próprios sonhos, Freud afirmou que todos os sonhos são a realização de desejos.  Ele dizia que podemos observar isto claramente nas crianças: elas sonham com sorvetes e cerejas, por exemplo. Em adultos, porém, acontece com freqüência de os desejos a serem satisfeitos no sonho aparecerem disfarçados.  Isto acontece porque mesmo quando estamos dormindo uma censura severa continua a determinar o que podemos nos permitir ou não.  Quando estamos dormindo, esta censura, ou mecanismo de repressão, é mais fraca do que quando acordados, mas ainda é forte o bastante para desfigurar no sonho os desejos que não queremos confessar nem a nós mesmos.

Sofia – E é por isso que os sonhos têm de ser interpretados?

Alberto – Freud mostra que precisamos distinguir entre o sonho, tal como ele nos vem à lembrança na manhã seguinte, e o seu verdadeiro significado.  As próprias imagens oníricas, quer dizer, o filme ou o vídeo a que assistimos quando sonhamos, ele as chamou de conteúdo manifesto do sonhoMas o sonho também tem um significado mais profundo, que permanece inacessível ao consciente.  E este significado, Freud o chamou de pensamentos latentes do sonhoAs imagens oníricas e seus requisitos são geralmente tiradas do passado mais próximo, com freqüência dos acontecimentos que vivemos no dia anterior.  Os pensamentos ocultos, porém, vêm de um passado mais remoto; por exemplo, das primeiras fases de nossa infância.

Sofia – Quer dizer que precisamos analisar o sonho para entender do que ele trata realmente.

Alberto – Sim.  E os enfermos precisam fazer isto junto com um terapeuta.  Mas não é o médico quem interpreta os sonhos.  Ele só pode fazer isto com a ajuda do paciente.  O médico entra nessa situação apenas corno urna parteira socrática que ajuda na interpretação.

Sofia – Entendo.

Alberto – O ato de reformular, de converter os “pensamentos latentes do sonho” em “conteúdo manifesto do sonho” é chamado por Freud de trabalhar o sonho.  Podemos falar de um “mascaramento” ou de uma “codificação” da verdadeira ação que se desenrola no do sonho. Na interpretação do sonho temos de passar por um processo inverso. Temos de desmascarar ou decodificar o verdadeiro “motivo” do sonho, a fim de podermos descobrir o verdadeiro “temado sonho.

Sofia – Você poderia me dar um exemplo?

Alberto – Os livros de Freud estão cheios desses exemplos. Mas nós mesmos podemos inventar um exemplo bem simples e bem freudiano.  Quando um rapaz sonha que sua prima lhe deu dois balões de ar…

Sofia – Sim?

Alberto – Não espere que eu continue.  Você mesma deve tentar interpretar este sonho agora.

Sofia – Hmrn…. Neste caso, o “conteúdo manifesto do sonho” é exatamente isto que você disse: a prima dele lhe dá dois balões de ar.

Alberto – Continue.

Sofia – E você também disse que os requisitos de nossos sonhos geralmente são tirados das experiências vividas no dia anterior.  Portanto, ele deve ter ido a um parque de diversões no dia anterior, ou então viu no jornal a foto de dois balões de ar.

Alberto – Sim, pode ser.  Mas também pode ser que ele tenha apenas ouvido a palavra “balão” ou visto alguma coisa que o tenha feito lembrar de um balão.

Sofia – Mas o que são os “pensamentos latentes do sonho”?  Eles não são aquilo de que o sonho realmente trata?

Alberto – Quem está interpretando sonhos aqui é você.

Sofia – Será que ele simplesmente não estaria querendo dois balões?

Alberto – Não, isto é pouco provável.  Num ponto, porém, você tem razão: ele quer satisfazer um desejo no sonho.  Só que dificilmente um rapaz adulto desejaria assim tão ardentemente dois balões de ar. E, se quisesse, não seria necessário sonhar com isto.

Sofia – Então… acho que na verdade ele deseja a sua prima.  E os dois balões são os seios dela.

Alberto – Sim, esta é uma explicação provável, sobretudo porque este desejo lhe causa certo embaraço, de modo que ele não gosta de admiti-lo quando está acordado.

Sofia – Quer dizer que nossos sonhos dão umas voltas e passam por coisas como balões etc.?

Alberto – Sim.  Freud considerava o sonho a realização disfarçada de desejos disfarçados.  Pode ser que o que disfarçamos tenha se modificado consideravelmente desde que Freud conversava com seus pacientes em seu consultório em Viena.  Apesar disso, é possível que o mecanismo de disfarce continue intato.

Sofia – Entendo.

Alberto – Nos anos 20, a psicanálise de Freud se tornou muito importante, sobretudo no tratamento das neuroses.  Além disso, sua teoria do Inconsciente foi muito importante para a arte e a literatura.

Sofia – Você está querendo dizer que os artistas passaram a se ocupar mais da vida mental inconsciente do homem?

Alberto – Exatamente, embora isto já estivesse presente na literatura da última década do século passado, quando a psicanálise de Freud ainda não era conhecida.  Só estou querendo dizer que não é por acaso que a psicanálise de Freud surgiu exatamente nesta época.

Sofia – Você quer dizer que ela já estava embutida no espírito da época?

Alberto – Freud não acreditava ter descoberto, por assim dizer, fenômenos como a repressão, os atos falhos ou a racionalização.  Mas ele foi o primeiro a trazer para dentro da psiquiatria tais experiências humanas. Ele também soube ilustrar muito bem sua teoria com exemplos extraídos da literatura.  Mas, como eu disse, a psicanálise de Freud passou a influenciar diretamente a arte e a literatura a partir dos anos 20.

Sofia – De que forma?

Alberto – Escritores e pintores passaram a tentar aplicar as forças inconscientes em seus trabalhos de criação. E isto vale sobretudo para os chamados surrealistas.

Sofia – O que significa isto?

Alberto – A expressão “surrealismo” é francesa e significa algo como aquilo que está além do realismo”. Em 1924, André Breton publicou seu Manifesto surrealista.  Nele, Breton declara que a arte deveria ser criada a partir do inconsciente, pois só assim a inspiração do artista estaria livre para produzir suas imagens oníricas e o artista poderia buscar um “super-realismo”, no qual as barreiras entre sonho e realidade fossem abolidas. De fato, pode ser muito importante para um artista eliminar a censura do consciente, a fim de que palavras e imagens possam fluir livremente.

Sofia – Entendo.

Alberto – De certa forma, Freud tinha dado a prova de que todas as pessoas são artistas.  Afinal, um sonho é uma pequena obra de arte e a cada noite criamos novos sonhos.  Para interpretar os sonhos de seus pacientes, Freud freqüentemente tinha de abrir caminho através de um denso emaranhado de símbolos, mais ou menos como fazemos quando interpretamos um quadro ou um texto literário.

Sofia – E nós sonhamos todas as noites?

Alberto – Pesquisas recentes demonstraram que vinte por cento do tempo que passamos dormindo é preenchido por sonhos.  Isto significa que sonhamos de duas a três horas por noite.  Quando somos perturbados durante essas fases, reagimos com nervosismo e irritação.  Isto significa nada mais e nada menos que todas as pessoas têm uma necessidade inata de dar à sua situação existencial uma expressão artística. O sonho trata de nós mesmos.  Somos nós quem dirigimos este “filme”, juntamos tudo o que compõe os seus cenários e requisitos e desempenhamos todos os papéis. As pessoas que dizem que não entendem nada de arte são pessoas que se conhecem mal.

Sofia – Entendo.

Alberto – Além disso, Freud deu uma prova impressionante de como é fantástica a mente humana. Seu trabalho com pacientes convenceu-o de que guardamos no fundo de nossa mente tudo o que vimos e vivemos. E todas essas impressões podem ser trazidas à tona novamente. Todas as vezes em que nos dá “um branco” e, pouco depois, ficamos com o que queremos lembrar “na ponta da língua”, e quando, um pouco mais tarde ainda, a coisa “subitamente nos ocorre”, estamos falando de algo que estava no inconsciente e, de repente, encontrou uma porta entreaberta e conseguiu escapar para o consciente.

Sofia –  Mas às vezes isto demora muito.

Alberto – Sim, todos os artistas sabem disso.  Só que de repente todas as portas e gavetas do arquivo parecem se abrir. Tudo flui espontaneamente e então podemos escolher exatamente as palavras e as imagens de que precisamos. Isto acontece quando deixamos a porta do inconsciente entreaberta.  Podemos chamar isto de inspiração, Sofia.  E então temos a sensação de que aquilo que desenhamos ou escrevemos não veio de nós.

Sofia – Deve ser um sentimento maravilhoso.

Alberto – Mas com certeza você mesma já o experimentou.  Podemos observar facilmente este estado inspirado em crianças que estão supercansadas.  Neste estado, as crianças parecem mais acordadas do que nunca e começam a falar sem parar, tirando da memória palavras que elas ainda nem aprenderam.  Só que é claro que elas já aprenderam. Acontece que essas palavras estavam “latentes” no seu consciente e só agora, quando o cansaço relaxa o policiamento e abole a censura, elas podem vir à tona.  Para o artista, a situação é diferente. Mas também para ele pode ser importante que a razão e a reflexão não exerçam um controle tão rigoroso sobre aquilo que melhor pode se desenvolver espontânea, livre e inconscientemente.  Posso contar uma fábula que ilustra muito bem o que estou dizendo?

Sofia – Claro!

Alberto – É uma fábula muito séria e muito triste.

Sofia – Pode começar.

Alberto – Era uma vez uma centopéia que sabia dançar excepcionalmente bem com suas cem perninhas. Quando ela dançava, os outros animais da floresta reuniam-se para vê-la e ficavam muito impressionados com sua arte. Só um bicho não gostava de assistir à dança da centopéia: uma tartaruga.

Sofia – Na certa porque tinha inveja.

Alberto – “Como será que eu posso conseguir fazer a centopéia parar de dançar?”, pensava ela.  Ela não podia simplesmente dizer que a dança da centopéia não lhe agradava. E também não podia dizer que sabia dançar melhor que a centopéia, pois ninguém iria acreditar.  Então ela começou a bolar um plano diabólico.

Sofia – Que plano era esse?

Alberto – A tartaruga pôs-se, então, a escrever uma carta endereçada à centopéia: “Oh, incomparável centopéia!  Sou uma devota admiradora de sua dança singular e gostaria muito de saber como você faz para dançar. Você levanta primeiro a perna esquerda número 28 e depois a perna direita número 59, ou começa a dançar erguendo a perna direita número 26 e depois a perna esquerda número 49? Espero ansiosa por sua resposta. Cordiais saudações, a tartaruga”.

Sofia – Que coisa de doido!

Alberto – Quando a centopéia recebeu esta carta, refletiu pela primeira vez na sua vida sobre o que fazia de fato quando dançava. Que perna ela movia primeiro? E qual perna vinha depois? E você sabe, Sofia, o que aconteceu?

Sofia – Acho que a centopéia nunca mais dançou.

Alberto – Foi isso mesmo. E é exatamente isto que pode acontecer quando o pensamento sufoca a imaginação.

Sofia – É triste mesmo esta história.

Alberto – Para um artista, portanto, pode ser muito importante “se deixar levar”. Os surrealistas tentavam se aproveitar disso e buscavam um estado em que tudo parecia brotar espontaneamente. Eles sentavam-se à frente de uma folha de papel em branco e começavam a escrever, sem pensar no que estavam escrevendo. Era isto o que chamavam de escrita automática.  Na verdade, a expressão vem do espiritismo, em que um “médium” acredita que o espírito de alguém que já morreu está dirigindo sua mão ao escrever… Mas acho melhor continuarmos falando amanhã sobre essas coisas.

Sofia – Tudo bem.

Alberto – O artista surrealista também é, de certa maneira, um médium.  Ele é um médium de seu próprio subconsciente.  Contudo, é possível que haja uma pontinha de inconsciente em todo processo criativo.  Pois o que seria isto que chamamos de “criatividade”?

Sofia – Ser criativo não significa criar algo de novo e de único?

Alberto – Mais ou menos.  E isto ocorre por meio de uma delicada interação entre imaginação e razão.  Na maioria das vezes, a razão sufoca a imaginação; e isto é ruim, pois sem imaginação não é possível produzir nada de novo.  Eu vejo a imaginação como um sistema darwinista.

Sofia – Desculpe, mas esta eu não entendi.

Alberto – O Darwinismo explica que a natureza produz um mutante atrás do outro.  Mas a natureza só precisa de alguns poucos desses mutantes.  Só alguns poucos têm a chance de viver.

Sofia – E então?

Alberto – O mesmo acontece quando pensamos, quando estamos inspirados e temos muitas e novas idéias.  Nesse caso, nossa cabeça produz um “pensamento mutante” atrás do outro.  Quer dizer, isto se nós não nos impusermos uma censura muito severa.  Acontece que só vamos usar realmente alguns desses pensamentos.  E é aqui que entra a razão, pois ela também tem uma função importante. Quando temos sobre a mesa o resultado da pesca, não podemos esquecer de escolher os peixes.

Sofia – Esta é uma ótima comparação.

Alberto – Imagine se tudo o que nos “ocorre”, se cada lampejo de pensamento tivesse autorização para sair da nossa boca!  Ou então para saltar do bloco de apontamentos ou sair das gavetas da escrivaninha! O mundo se afogaria bem depressa num mar de idéias e lembranças casuais.  E não haveria uma “seleção”, Sofia.

Sofia – E a razão escolhe as melhores entre todas as idéias e lembranças?

Alberto – Sim, ou você não acha?  A imaginação pode criar coisas novas, mas não é ela que realmente escolhe. Não é a imaginação que “compõe”.  Uma composição, e toda obra de arte é uma composição, surge de uma admirável interação entre imaginação e razão, ou entre sentimentos e pensamentos.  O processo artístico tem sempre um elemento de casualidade. Em certa fase pode ser importante não represar essas idéias e lembranças casuais.  As ovelhas precisam ser soltas primeiro para só depois o pastor poder vigiá-las. (…)

Alberto – (…) a imaginação também é importante para nós, filósofos.  Para chegarmos a pensar alguma coisa nova, também precisamos ter coragem de nos deixar levar.

6. Quando a sexualidade engatinha – Lulie Macedo

 (Revista da Folha – Jornal Folha de São Paulo – Domingo, 07/09/2003)

Sexualidade e infância são assuntos que não se misturam, certo? Errado. Desde que o mundo é mundo, as crianças não brincam de médico à toa: a aventura do descobrimento começa já nos primeiros meses, quando o bebê experimenta o prazer de explorar o próprio corpo, e se acentua nos anos seguintes, quando sua atenção se volta para o corpo dos pais e de outras crianças.  Quase cem anos depois de Sigmund Freud descrever pela primeira vez o desenvolvimento da sexualidade infantil, o comportamento exploratório dos pequenos continua produzindo uma legião de pais e mães desnorteados diante de perguntas e cenas inesperadas – e aí pouco importa que sejam experiências que eles mesmos já tiveram na infância.

 

“Sexualidade, para o adulto, tem caráter estritamente erótico e está ligada apenas à realização desses desejos. Essa idéia não é compatível com a imagem que fazemos da inocência infantil, por isso muitos de nós preferem ignorar”, explica Marcos Ribeiro, sexólogo e consultor do Ministério da Saúde e autor de diversos livros sobre o assunto. Mesmo pais que se definem como modernos e liberais “travam” ao ter encarar na prática assuntos como masturbação e brincadeiras que envolvem os órgãos genitais. “Muitas vezes, eles é que precisam de orientação sexual, porque ficam sem saber como lidar com essas questões”, afirma o psicólogo Paulo Rennes Marçal Ribeiro, coordenador do Núcleo de Estudos da Sexualidade da Unesp.

 

Na maioria das vezes, a distância entre a moral do universo adulto e a ausência de pudor infantil resulta em ensinamentos cheios de “tira a mão daí, aquilo não pode, isso é feio” – exatamente a atitude que psicólogos, professores e sexólogos condenam. Os terapeutas são unânimes: tratar o assunto com naturalidade é condição fundamental.

 

Mas o que fazer, por exemplo, diante de duas crianças de três anos nuas, brincando com seus órgãos sexuais?

 

“Claro que é um momento muito difícil para os pais, mas vejo dois caminhos: sair de perto e, se for o caso, comentar o assunto com naturalidade depois, e aproximar-se e interromper educadamente a cena, convidando a criança para fazer alguma outra atividade”, recomenda Marcos Ribeiro. “Pode-se dizer, por exemplo, ‘Vamos parar com a brincadeira porque agora o papai (ou a mamãe) precisa da sua ajuda para uma tarefa’. Mas sem tom de bronca”, ensina o sexólogo.

 

Traumatizar a criança com reações extremadas é pior, dizem os especialistas, porque ela dificilmente vai abandonar o que lhe dá prazer, só o fará escondido. “O problema não está na exploração sexual do próprio corpo ou nas brincadeiras entre crianças da mesma idade. Prejudicial é a repressão do adulto a essas atitudes, quando ele grita, proíbe, bate ou põe de castigo. Fazendo isso ele transmite a noção de que aquilo é errado, quando na verdade essas atitudes são tão naturais quanto aprender a andar, falar, brincar”, afirma Maria Cecília Pereira da Silva, psicanalista e membro da ONG Grupo de Trabalho e Pesquisa em Orientação Sexual.

 

Além disso, jogos sexuais entre crianças da mesma idade não costumam oferecer risco à integridade física de seus envolvidos (antes da puberdade, meninos nem têm ereção suficiente para penetração). “A ameaça de ato sexual está apenas na mente adulta, já que para as crianças menores a brincadeira tem a ver com a sensação que o toque proporciona”, diz Marcos Ribeiro.

 

A dificuldade é conciliar a reação ideal almejada pelos especialistas com os valores morais de cada família. “Eles ficam assustados, perguntam o que pode vir depois, se a criança já faz aquilo naquela idade”, conta Sueli Gonçalves Gomes, orientadora da educação infantil do colégio Santa Maria, no Jardim Marajoara, zona sul.  Não virá nada, respondem os especialistas. Por volta dos sete anos, as crianças entram na etapa chamada latência (veja quadro acima), quando a sexualidade perde parte da importância. Com a chegada da fase escolar propriamente dita, a criança começa a se interessar por atividades que antes não estava preparada para desempenhar. A pais renitentes ou assustados, a psicóloga Maria Cecília lembra a definição da OMS (Organização Mundial de Saúde): “Sexualidade não é sinônimo de coito e não se limita à presença ou não do orgasmo. Ela influencia pensamentos, sentimentos, ações e a saúde física e mental. Se saúde é um direito humano fundamental, a saúde sexual também deveria ser considerada um direito humano básico”. Para quem acha que o discurso é bonito, mas não resolve na hora do susto, a Revista elencou as situações mais comuns e ouviu especialistas sobre a melhor reação diante de cada uma. Confira a seguir.

 

Masturbação – Na escola infantil, Antônio, 2, roça o pênis no colchão até dormir. Na classe ao lado, a professora percebe que Bernardo, 5, está se masturbando enquanto ela conta histórias.

 

Quem trabalha com crianças tem sempre muitos casos como esses para contar. Descobrir o próprio corpo faz parte da tarefa de tentar entender o mundo, e o prazer em manipular os órgãos sexuais é uma das primeiras descobertas. Em situações que confortam e dão prazer – como a hora da alimentação ou da troca de fraldas – é comum ver bebês de ambos os sexos com ereção; as meninas têm inclusive lubrificação vaginal, explica a sexóloga e hoje prefeita Marta Suplicy no livro “Papai, Mamãe e Eu” (editora FTD, 88 págs., R$ 35,80), lançado em 1999 e até hoje um dos mais indicados pelos especialistas da área. Isso acontece porque olhos, pele, boca, paladar, olfato e órgãos genitais integram um complexo nervoso que tem conexões com o centro sexual do cérebro.

 

O prazer “inconsciente” do bebê do berçário e a masturbação do garoto mais velho são etapas diferentes do mesmo processo de desenvolvimento. “Pais e professores devem encarar com naturalidade, sem repreender ou transmitir noções de sujeira ou coisa errada. Se acontecer em público, os adultos devem explicar que aquele é um ato íntimo, e portanto deve ser feito em lugar reservado”, afirma o psicólogo Paulo Rennes, da Unesp. Mas nem por isso os pais devem ficar menos atentos ao comportamento. “Se for compulsiva ou obsessiva, a masturbação pode indicar alguma frustração ou situação emocional difícil e é preciso procurar ajuda especializada”, alerta a psicóloga Maria Cecília Pereira da Silva, do GTPOS.

 

Além disso, nem toda manipulação dos genitais é sinônimo de masturbação. “Pode se tratar de algum incômodo físico, como alergias, assaduras e até picadas de inseto”, diz Ângela Maria Espínola de Castro, pediatra endocrinologista da Unifesp.

 

Marcos Ribeiro, consultor do Ministério da Saúde, recomenda cuidado maior no caso das meninas. “É preciso conversar e informar, porque elas podem introduzir objetos na vagina e se machucar.”

 

Jogos sexuais – Júnior, 5, diz para Léo, 4, que um chupar o “pipi” do outro é normal, porque os bebês fazem o mesmo com o peito da mãe. O menor conta para o pai, que, desesperado, procura a professora da escola.  Em situações como essa, os adultos tendem a reagir mal, reprimindo, gritando e até batendo na criança, diz Paulo Rennes. Nada mais equivocado. Logo depois de explorar o próprio corpo, a atenção infantil se volta para o corpo alheio: é a fase em que começam a perceber as diferenças entre meninos e meninas, adultos e crianças. Não faça alarde, nem projete coisas do seu mundo no mundinho deles, recomendam os profissionais.

 

“Os pais devem tentar agir com naturalidade, explicando que a criança não deve fazer nada que não queira com o próprio corpo – nem com o corpo do outro. É bom aproveitar para dizer que, se ela se sentir desconfortável com alguma brincadeira, deve procurar um adulto de confiança e contar”, afirma Maria Cecília. Mas é bom apurar toda a história para conferir se é realmente verdade: “Criança fantasia bastante”, ressalva.

 

O problema pode se tornar mais sério quando ocorre entre crianças de idades muito diferentes – quatro, cinco anos a mais -, porque pode envolver coerção e configurar abuso sexual. Os pais devem dizer que não é errado a criança brincar com amiguinhos da mesma idade, mas nunca com os mais velhos ou adultos. Também não vale estigmatizar a criança mais velha, transformando-a num quase tarado: nem sempre mais idade significa maturidade maior. Além disso, ela pode estar enfrentando problemas no próprio desenvolvimento sexual e precisar de ajuda profissional.

 

Brincar de beijo na boca – Cássio, 4, corre atrás de Daniela, 5, e a beija na boca. Depois, chama a menina de “Helena”, personagem da novela da Globo. Em pleno processo de aprendizagem, a criança repete tudo o que vê. “O que esperar de crianças expostas freqüentemente a cenas de beijos e carícias na TV”, pergunta Paulo Rennes. “O estímulo à precocidade e a comportamentos sexuais vem desse cotidiano.” Marcos Ribeiro afirma que não há necessidade de reprimir a brincadeira, desde que se observe a regra da mesma faixa etária. Também é importante ficar atento para ver se a criança não está sendo forçada a alguma coisa.

 

De volta ao peito – Desmamada desde os nove meses, Luíza, 3, passa a reclamar o seio da mãe com insistência, em casa ou lugares públicos. Ela cede uma vez, mas se incomoda com a freqüência. Quando recusa, a menina chora.  Geralmente, é necessidade de um contato afetivo mais estreito com a mãe, uma forma de voltar a um período gratificante da vida, dizem os terapeutas, e ocorre principalmente quando nasce um irmãozinho, e a criança maior se sente em segundo plano.

 

“Se a mãe estiver amamentando o menor, pode deixar o maior experimentar, para que ele prove que o gosto não é lá essas coisas. Mas os pais devem reforçar que ela já é grandinha e tem dentes para se alimentar, ao contrário do irmãozinho”, aconselha Maria Cecília. Se não estiver amamentando ou não se sentir confortável em dar o seio, deve explicar que não tem mais leite e que o peito é uma parte íntima de seu corpo. “É uma boa hora para reforçar que não se deve deixar que mexam no corpo da gente quando não queremos”, lembra.

 

Marcos Ribeiro levanta outro ponto. “É importante que os pais atentem para o motivo. Em alguns casos, vítimas de algum tipo de abuso sexual tentam ‘voltar’ a fases anteriores, em que se sentiam protegidas”, diz.

 

Exibir os genitais – Basta chegar uma visita e Vítor, 4, vai para o quarto, tira a roupa e faz uma “entrada triunfal” na sala, totalmente nu.  O “exibicionismo” infantil faz parte da fase de exploração dos corpos. Como um brinquedo novo, a criança quer mostrar aos outros o que já descobriu. Quanto à menina que adora levantar a roupa e mostrar o bumbum, por exemplo, pode estar imitando algo que viu na TV. Em qualquer situação, cabe aos adultos começar a ensinar a noção de intimidade.

 

“Ela não sabe o que é certo ou errado, quais são os códigos sociais, a diferença entre o público e o privado. Cabe aos pais e educadores ensinar que ali não é lugar para isso”, afirma Maria Cecília. É também a hora de falar sobre respeito. “Alguns pais acham que tudo que seu filho faz é uma gracinha, mas se esquecem de que aquela gracinha vai crescer e viver em sociedade. Pais e professores devem mostrar que vivemos com outras pessoas, temos de respeitá-las e parte desse respeito é não ficar mostrando seu órgão sexual para quem não quer ver”, recomenda Marcos Ribeiro.

 

Ver o ato sexual – A porta do quarto estava só encostada, e Maria, 3, viu os pais transando. No dia seguinte, contou à professora que, quando o casal está no quarto, seu pai fica tentando matar a mamãe. Tiago, 5, assiste a um filme pornô na TV a cabo e depois quer fazer sexo oral com a prima da mesma idade.

 

Se a criança viu o ato sexual, mesmo que ela não pergunte, é fundamental falar sobre o assunto, para que ela não comece a fantasiar. E não se esqueça: se isso aconteceu, foi por descuido dos adultos.

“Geralmente os pais reagem mal, põem a culpa no filho por ter visto ‘algo que não devia'”, conta Paulo Rennes.

 

No primeiro caso, Marcos Ribeiro sugere deixar a conversa para o dia seguinte. “Pai e mãe podem começar, informalmente, perguntando: ‘Acho que você viu a gente fazendo amor, tendo uma relação sexual. Você sabe o que é isso?’ Fique atento à reação. Se ela disser que sim, descubra o que realmente sabe e complemente, se necessário. Se não, fale brevemente sobre namoro e relação sexual, explique que foi num momento como aquele que ela foi feita. Utilizar um livro infantil é uma boa saída, mas não fale demais nem explique além do que ela quer saber.”

 

No caso do filme pornô, é preciso perguntar o que ela viu e mostrar que a realidade das pessoas não é aquela. “Explique que os filmes são feitos para despertar vontade nas pessoas, mas que sexo não é só aquilo, tem carinho e afeição. É importante que a criança cresça fazendo essa associação”, diz Marcos Ribeiro.

O caminho da sexualidade infantil

 

O primeiro a tratar do assunto foi Sigmund Freud, no início do século 20. Para o pai da psicanálise, a sexualidade infantil passa por quatro fases: oral, anal, fálica e de latência. Até hoje esses conceitos formam a base do pensamento sobre a sexualidade na infância, mas foram incrementados por outras linhas de pensamento. As faixas etárias de cada fase não são absolutas, mas aproximadas

 

a) 0 a 2 anos – Oral – Nos primeiros meses, o prazer da criança se concentra na região da boca, sua atenção está voltada para o que entra e sai de seu corpo via oral: ela suga o seio da mãe, chupa mamadeira, come papinha, regurgita (mas já é capaz de ter sensações agradáveis nos órgãos genitais). A boca é sua forma de comunicação com o meio externo

 

NO CORPO – Até cerca de um ano, o bebê produz os mesmos hormônios da puberdade, em menor quantidade: meninas fabricam estrogênio, meninos, testosterona, e ambos produzem hormônios hipofisários, responsáveis pela estimulação de ovários e testículos. A partir de um ano, essa produção fica em “repouso” para retornar de forma intensa na adolescência

 

b) 2 a 3 anos – Anal – Quando começa a deixar as fraldas, a atenção da criança se volta para suas necessidades fisiológicas: ela começa a perceber que pode controlar o esfíncter (músculo envolvido na evacuação), cujos movimentos também proporcionam sensação de prazer. Ficam orgulhosas do que seu corpo produz, algumas nem querem dar a descarga. Pais e professores também colaboram para o aumento de atenção nessa etapa, perguntando o tempo todo se a criança quer fazer cocô ou xixi

 

NO CORPO – O crescimento físico desacelera em relação à fase anterior, fica mais lento, porém constante, e volta a se intensificar na puberdade

 

c) 4 a 6 anos – Fálica – Começam a descobrir/explorar seus órgãos sexuais e a perceber as diferenças anatômicas entre meninos e meninas. A curiosidade estimula a masturbação e as brincadeiras sexuais com outras crianças. O orgasmo é possível, embora os meninos não ejaculem. Nessa fase a criança já tem total consciência de sua identidade sexual (noção sobre seu sexo, diferente de orientação sexual, que pode ser homo, bi ou hétero). É também a fase das perguntas sobre sexo e a origem dos bebês

 

NO CORPO – Aos seis anos, intensifica-se a produção de um hormônio da glândula supra-renal, que pode provocar leve odor no corpo e nascimento moderado de pêlos superficiais

 

d) A partir dos 7 – Latência – Época que antecede a puberdade e a criança está se preparando psiquicamente para as intensas mudanças que virão. Nessa fase, que coincide com o início da vida escolar, a sexualidade fica em segundo plano, em detrimento de novas descobertas, especialmente no terreno intelectual. A curiosidade sexual não desaparece, mas fica latente

 

NO CORPO – Atualmente, a precocidade pode fazer com que a latência se misture à puberdade (principalmente nas meninas), inaugurada pela maior produção hormonal e alterações físicas, como nascimento de pêlos, desenvolvimento dos seios, polução noturna (as primeiras ejaculações)

 

 

7.  Freud e Machado de Assis em “Memórias póstumas de Brás Cubas”

– As mulheres “pecadoras” de Machado de Assis –

 

(Do livro: Freud e Machado de Assis – uma interseção entre psicanálise e literatura, Editora Mauad, ano 2001, cap. IV, págs 79-107)

 

Luiz Alberto Pinheiro de Freitas

 

O medo que o homem sente da mulher é tão antigo quanto a história, mas foi só no século burguês que ele se transformou num tema proeminente nos romances populares e tratados médicos. Atraiu a atenção de jornalistas, pregadores e políticos; invadiu os sonhos dos homens e forneceu‑lhes assunto para poemas e pinturas. A demonstração aberta e crescente que a mulher fazia de seu poder parecia ser a contrapartida pública do poder que os homens exerciam privadamente, com uma ansiedade cada vez maior, na segunda metade do século XIX: um e outro forneceram ao homem formidáveis argumentos contra a emancipação da mulher. Para a maioria dos homens que se regalavam com a dominação, uma mulher que abandonasse sua própria esfera constituía não apenas unia anomalia, unia mulher‑macho; mais do que isso, levantava incômodas questões quanto ao papel masculino, um papel que não se definia mais isoladamente, mas numa constrangedora confrontação com o sexo oposto (Gay, Peter 1989, A educação dos sentidos, p. 128).

 

Machado de Assis foi um autor que escreveu para mulheres e sobre mulheres. Pode‑se ver que não só em Brás Cubas, como em Quincas Borba, existem várias passagens nas quais dialoga com uma leitora, isso mesmo, com uma leitora ‑ no feminino, Conforme sabemos, seus romances foram, alguns deles, primeiramente escritos em jornais para moças. Foi ele um escritor que contribuiu para a libertação da mulher burguesa, condenada que estava a viver para a família, ou seja, casa, marido e filhos. Seus textos, como os de Flaubert, punham a mulher sonhar ‑ diríamos que da mesma forma que o Manual dos confessores25 da Idade Média as punha também a pecar. É na sua chamada fase da maturidade que ele apresentará a questão do pecado do adultério, que traz como subprodutos o ciúme E a disputa entre os homens por esta sedutoras de colos brancos, de ombros desnudos, de olhos convidativos, de talhes garbosos; assim como diria o mestre: uma lascívia.

 

Como afirmamos anteriormente, Machado foi um grande apreciador de Shakespeare, em suas obras existem várias passagens em que se refere ao dramaturgo inglês. É curioso, inclusive, como sempre gostou de fazer referências a Otelo. E em quantas passagens de seus personagens não surge a mesma temática ‑ a traição? Em seu primeiro romance Ressurreição, Félix passa grande parte de sua vida com a viúva Lívia a pensar na possibilidade de ser traído. Machado o faz desistir do casamento após uma crise de ciúmes em que considerou a possibilidade de que Lívia já traía o marido morto; ele também o seria. A temática já se apresentava nessa aurora. Estas situações triangulares vão também aparecer em outros personagens: Estevão, Luís Alves e Guiomar, de A mão e a luva, em Jorge, Luís Garcia e Valéria, de Iaiá Garcia, se bem que, nestes romances, a temática se restringe às possibilidades, ou seja, Este­vão disputa com Luís Alves a preferência de Guiomar, contudo não há nenhuma possibilidade de adultério, somente ciúmes. Já Valéria ama Jorge, mas por conveniências sociais casa‑se com Luis Garcia. A dispu­ta é entre Valéria e Iaiá Garcia. O adultério, diríamos, é psicológico, ela ama, mas mantém‑se completamente reprimida. Entretanto, em Brás Cubas, a situação é completamente diferente, Marcela trai abertamente, por dever de ofício, é prostituta de luxo, e a maravilhosa Virgília trai o marido Lobo Neves, mantendo com Brás Cubas uma casa na Gamboa para os encontros amorosos. Em Quincas Borba, em que há o maior número de referências a Otelo, o adultério como possibilidade é a tôni­ca de todo o romance. Rubião está sempre à espera do sim de Sofia. Ela encarna a sedução – é a mais legítima representante do comentário de Freud de que as histéricas sempre encantam nos salões. Se não chegam à vias de fato, no entanto,  a muitos, parece que sim.  É  a sedução consentida, é o triângulo que excita o marido, na sua admiração homossexual pelo potencial amante, o ricaço de Barbacena. Como todos sabemos, o paroxismo da traição por adultério é apresentado por Bento Santiago devido a sua posição de promotor de direito, que fez com que, inclusive durante muitos anos, se tentasse, ingenuamente, chegar a uma condenação ou a uma absolvição de Capitolina. A ironia do nosso mestre foi de criar um estado de espírito no leitor que o levasse a apaixonadamente tomar um partido. Ironicamente cutucava o leitor através dos comentários do casmurro Santiago: “… minha vida se casa bem à definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor…” (DC, p. 738). Levou-se algum tempo para se perceber que Capitu não fala, não pode dizer nada sobre si – um diário de outrem não pode ser apresentado como peça de acusação. A arte de Machado foi levantar a dúvida, talvez a cutucada tenha sido a de se divertir, pois sabia o quanto é difícil para o homem conviver com a dúvida – possivelmente sabia que o ser humano quer, sempre, dar sentido a tudo.

 

Voltemos à nossas heroínas, ou melhor, às heroínas que podemos afirmar estão mais diretamente envolvidas com a questão do pecado: Virgília, Marcela, Sofia e Capitolina. Contudo, é necessário não nos esquecermos que, se incluiu em alguns romances essas mulheres pérfidas, também as salvou em Fidélia e Carmo, de Memorial de Aires. Mulheres pobras, na qual os exibicionismos histéricos os narcisismos exacerbados, não fazem parte do repertório de condutas dessas damas. Apesar de Machado ter levantado, sobre a viúva Fidélia, a dúvida de que talvez traísse o noivo, quando ia ao cemitério visitar a tumba do falecido marido. Todavia, coloca a questão mais para a insegurança de Tristão do que sobre um desvio de caráter da mulher. Dona Carmo é o protótipo da mulher ideal, não trai, não desaponta, não levanta dúvidas – está acima de qualquer suspeita, não há o que reparar. O tema é curioso, suscita questões que na época eram vistas como tabu. Machado tinha 17 anos quando Flaubert começou a publicar na Revue de Paris os primeiros capítulos de Madame Bovary, obra que também aborda o tema do adultério. Tanto Machado quanto Flaubert participaram do que Maria Rita Kehl (1998) chamou invenção do amor conjugal moderno.

 

“A mesma literatura que ajudou a inventar o amor conjugal moderno inventou o adultério como a verdadeira iniciação erótica das mulheres casadas, como o lugar imaginário em que uma mulher estaria efetuando uma escolha a partir de seu desejo, e não sendo “a escolhida” para realizar os desejos do futuro marido” (p. 117).

 

Machado pertencia a essa época em que o amor e o casamento eram as aspirações máximas de uma mulher. Não era dado às mulheres o direito de se assumirem como independentes do homem ‑ era a submissão ao pai e depois ao marido. Seus desejos pessoais, freqüentemente, não eram levados em conta. Ficar solteira era, para a mulher, uma desqualificação, como cita Machado nos pensamentos de D. Tonica de Quincas Borba: “os seus pobres olhos de trinta e nove anos, olhos sem parceiros na terra, indo já a resvalar do cansaço na desesperança” (QB, p. 582‑3).

 

Freud, em Moral sexual “civilizada ” e doença nervosa moderna (1908), comentava, aliando‑se às idéias do professor de filosofia de Praga, Christian von Ehrenfelds, que a moral sexual civilizada necessitava de reformas, visto que o cumprimento de seus preceitos freqüentemente produzia sérias neuroses. As restrições feitas à atividade sexual tanto dos homens quanto das mulheres ‑ proibição de toda relação sexual, exceto dentro do casamento monogâmico ‑ trazem para a saúde e a eficiência dos indivíduos grandes prejuízos, podendo até comprometer a própria cultura no futuro. Contudo, é a mulher a que mais sofre essas restrições, pois, como disse Freud, há que se admitir uma moral dupla. As sanções impostas às mulheres são muito mais severas que as impostas ao sexo masculino.

 

“Essa moral ‘dupla’ que é válida em nossa sociedade para os homens é a melhor confissão de que a própria sociedade não acredita que seus preceitos possam ser obedecidos” (p. 200).

 

Não se deveria deixar de considerar que as relações sexuais no matrimônio nem sempre proporcionaram os prazeres prometidos na espera, bem como que, durante muito tempo, foram também consideradas indignas, num matrimônio legítimo, certas práticas sexuais. A uma mulher honesta não deveria ser solicitado um sexo pervertido. O marido deveria ser o primeiro a preservá‑la. Entretanto, a lei existe exatamente para reprimir aquilo que o ser humano deseja fazer, e, como tal, surgem as contestações, as quais são, naturalmente, mais aceitas no universo mas­culino. No entanto, o casamento há muito deixou de ser uma forma tera­pêutica para os males femininos. Não é incomum que ele se tome um outro foco para o estabelecimento de novos quadros neuróticos.

 

6.1 ‑ VIRGÍLIA, ou o grão pecado da juventude

 

“[Virgília] contava apenas uns quinze ou dezesseis anos; era talvez a mais atrevida criatura da nossa raça, e, com certeza, a mais voluntariosa. ( … ) Era bonita, fresca, saía das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação. Era isto Virgília, e era clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de uns ímpe­tos misteriosos; muita preguiça e alguma devoção, ‑ devoção, ou talvez medo; creio que medo” (MPBC, p. 449‑50).

 

Machado de Assis disse, por carta, a Mario de Alencar que escre­veu Memórias póstumas de Brás Cubas porque se desiludira dos ho­mens. Já no prólogo, afirma que escreveu “com a pena da galhofa e a tinta da melancolia” (MPBC, p. 413). Talvez um certo prazer sádico que resvalava, por vezes, para um quadro depressivo. Depressão decorrente do problema ocular que perdurou de outubro a março de 1879: proble­ma não só grave para um escritor, como para qualquer mortal, uma vez que as sombras da cegueira produzem uma ferida narcísica impossível de ser cicatrizada. É necessário acrescentar que Machado já estava casa­do, e que foi após o casamento que surgiram as crises de epilepsia, ou histéricas  epileptiformes, o que não é possível afirmar com certeza. No capítulo II, em que fala sobre o emplasto, Brás Cubas apresenta‑o como destinado a ser um remédio “anti‑hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade” (MPBQ p. 416). Se nos lembrarmos que a melancolia está sempre referida a uma perda ‑ o que teria perdido Machado? Teria perdido as ilusões? As ilusões do amor? A vida íntima sem filhos? Teria se desiludido da sexualidade? Talvez a racionalizasse na sensualidade destas mulheres sedutoras: Marcela, Virgília, Sofia, Capitu, etc. Não o sabemos… Conjecturemos apenas… Era um lascivo como o disse de vários personagens, e, se não lhe agradava o exercício do pecado, gozava, pondo os personagens a pecar.

 

Como o livro começa pela morte do autor, ele mesmo se cognomina ­um autor defunto, e a presença de Virgília incrédula ante a morte do amante se faz notar, já no enterro, pelo padecimento maior que o dos parentes. Após esta cena, vem a visita ao moribundo, que recordou: “Tinha 54 anos, era uma ruína, uma imponente ruína ( … ) nos amamos, ela e eu, muitos anos antes” (MPBC, p. 419). Nestas apresentações de Virgília, não só é o leitor convidado a conhecê‑la, bem como é introdu­zido nesta filosofia cética e proustiana:

 

“Creiam‑me, o menos mau é recordar; ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma gota da baba de Caim. Corrido o tempo e cessado o espasmo, então sim, então talvez se pode gozar deveras, porque entre uma e outra dessas duas ilusões, melhor é a que se gosta sem doer” (MPBC, p. 419).

 

Machado vai introduzindo o leitor na paixão e na amargura, vai de início apresentando a vida como ela é, o realismo do destino, o desti­no anatômico de Freud apud Napoleão. Vai tentando desencantar os discursos dos amantes, dos amores e das dores, e que, se estão condena­dos à anatomia, não é para que não possam aproveitar o momento pre­sente, mas para saberem que na recherche du temps perdu se goza com mais serenidade ‑ é melhor porque não dói. A elucubração sobre a vida, passados os anos, é dura e de difícil digestão ‑ é o realismo cético ‑, não há intensidade amorosa na velhice. É o que diz um descrente Machado. Lúcia Miguel Pereira (1937) afirmava que Oliveira Lima havia privado com Machado, e dizia que o personagem Brás Cubas era “a fotografia da sua alma” (p. 192).

 

“Quem diria? De dous grandes namorados, de duas paixões sem freio, nada mais havia ali, vinte anos depois; havia apenas dous corações murchos, devastados pela vida e saciados dela, não sei se em igual dose, mas enfim saciados” (MPBC, p. 420).

 

A moral do século XIX julgava o adultério feminino como algo muito mais grave do que o cometido pelos homens. A lei era draconiana para com as mulheres, que poderiam, em alguns casos, ser mortas por seus maridos. O imaginário da época acalentava a possibilidade da fuga; amor proibido e fuga vinham juntos em oposição ao tema da honra e do sangue. A honra manchada deveria, obviamente, ser lavada em sangue, como uma satisfação à sociedade chauvinista, bem como um exemplo àquelas que pretendiam não observar os ditames da cultura. Não havia muita escolha para a dita mulher desonrada ‑ fugir ou morrer ‑, dilema ao qual ficavam restritos os amantes.

 

“.. perguntei‑lhe se tinha coragem.

 

‑ De quê?

 

‑ De fugir. Iremos para onde nos for mais cômodo, uma casa grande ou pequena, à tua vontade, na roça ou na cidade, ou na Europa, onde te parecer, onde ninguém nos aborreça, e não haja perigos para ti, onde vivamos um para o outro… Sim? fujamos. Tarde ou cedo, ele pode descobrir alguma cousa e estarás perdi­da… ouves? perdida… morta,.. e ele também, porque eu o matarei, juro‑te… ( … ).

 

‑ Não escaparíamos talvez; ele iria ter comigo e matava‑me do mesmo modo” (MPBC, p. 480).

 

Pode‑se ver, no famoso livro V das Ordenações Filipinas26, que o marido tinha o direito de matar sua mulher caso a encontrasse com outro.

 

“38. DO QUE MATOU SUA MULHER POR A ACHAR EM ADULTÉRIO

 

Achando o homem casado sua mulher em adultério, licita­mente poderá matar assim ela como o adúltero, salvo se o marido for peão e o adúltero fidalgo ou nosso desembargador, ou pessoa de maior qualidade. Porém, quando matasse alguma das sobreditas pessoas, achando‑a com sua mulher em adultério, não morrerá por isso mas será degredado para África com pregão na audiência pelo tempo que aos julgadores bem parecer, segundo a pessoa que ma­tar, não passando de três anos.

 

1 ‑ E não somente poderá o marido matar a sua mulher e o adúltero que achar com ela em adultério, mas ainda os pode licita­mente matar sendo certo que lhe cometeram adultério; e entenden­do assim provar, e provando depois o adultério por prova lícita e bastante conforme o direito, será livre sem pena alguma, salvo nos casos sobreditos, onde serão punidos segundo acima dito é” (Lara, Silvia H., Ordenações Filipinas, 1999, p. 151).

 

Trabalhar sobre o tema do adultério nem sempre era uma tarefa muito fácil, visto que, ainda dominados pela moral preconizada pelas Ordenações, o homem novecentista não via com bons olhos tal assunto ser colocado ao alcance de senhoras distintas ou de núbeis ingênuas. Caso semelhante ao de Flaubert que, em 1856, iniciou a publicação, em capítulos, de Madame Bovary na Revue de Paris, Machado de Assis publicava, em 1880, na Revista Brasileira, as Memórias póstumas de Brás Cubas, também em capítulos. Ambos trataram da traição feminina, contudo, o escritor brasileiro imprimiu ao texto um tom de humor e cinismo às relações humanas que caracterizavam a alta burguesia cario­ca. Caracterizou, através dos personagens, as mais corriqueiras situa­ções do ser humano, apresentou‑o através de seus mais comezinhos de­sejos, das situações mais inesperadas e mesquinhas. Surgiu, como disse Lúcia Miguel Pereira (1937), “uma piedade irônica e indulgente” (p. 194), e Brás Cubas foi “o primeiro dos tipos mórbidos em que Machado extravasou as próprias esquisitices de nevropata” (p. 195).

 

A moral burguesa do século XIX apresentava o adultério feminino como algo abominável. Daí, ao colocar a bela Virgília numa posição de trair o marido, depreende‑se que Machado pretendia abordar um cam­po delicado para as hostes masculinas. Virgília não só é descrita como adúltera, como terá seu egoísmo e ambição como defeitos do seu caráter destacados. Sua posição social, suas aspirações a um título de nobreza governam a cena.

 

“Virgília perguntou ao Lobo Neves, a sorrir, quando ele se­ria ministro.

 

‑ Pela minha vontade, já; pela dos outros, daqui a um ano.

 

Virgília replicou:

 

‑ Promete que me fará baronesa?

 

‑ Marquesa, porque eu serei marquês” (MPBC, p. 462).

 

Uma cena na qual a hipocrisia e o cinismo estão sempre presentes em uma mulher que, apesar de conseguir amar, não descurava das van­tagens que a vida conjugal lhe proporcionava: respeitabilidade, posição social, dinheiro, etc. Não foi à toa que Machado muitas vezes disse, através de seus personagens: nem sempre verdade e vantagem cami­nham juntas. Além de mantê‑la, aos olhos da moral social, denegrida, ele ainda a colocou como uma mulher com certa aversão27 à maternidade, pois esta poderia comprometer‑lhe o corpo e a vida social, “Era medo do parto e vexame da gravidez. Quanto ao vexame, complicava‑se ainda da forçada privação de certos hábitos da vida elegante” (MPBC, p. 507). A situação é levada a extremos por Machado, ao compor no seu entrecho um quadro de uma vida paralela em que o casal Brás e Virgília chegam a ter casa montada, inclusive com uma criada. Se hoje a situação de uma mulher bem casada ter casa com outro homem já seria calamitosa e inaceitável, imaginemos para a época.

 

O tema do adultério é logo insinuado no capítulo VI, no qual Machado deixa entrever que o encontro tem algo de estranho, de proibido ‑ “podíamos falar um ao outro, sem perigo” (MPBC, p. 420). Como o romance começa pela morte do autor defunto, este capítulo inicial refe­re‑se à visita que faz Virgília a Brás Cubas em seus últimos dias. Macha­do, nesta cena, também enfatiza a questão das conveniências sociais, a qual permeará toda a sua obra ‑”Estou velha! Ninguém mais repara em mim. Mas, para cortar dúvidas, virei com o Nhonhô” (MPBC, p. 421). Nhonhô era o filho da nossa dama com Lobo Neves, o qual, como disse Brás Cubas, durante muito tempo “fora cúmplice inconsciente de nossos amores” (MPBC, p. 420). Um filho em qualquer cena empresta‑lhe uma lisura de intenções, na medida em que o apelo à função materna ­sempre traz a suposição da maternidade como paradigma da fidelidade. O pai pode ser sempre traído, mas nunca em presença do filho. Contudo a ironia machadiana avilta o próprio sentido da mulher‑mãe, fazendo imperar a mulher-desejante, a da vida imaculada por ser senhora do seu corpo e das suas fantasias, e que pode trair, inclusive, em presença do filho ‑ e até enganá‑lo de forma dissimulada. A hipocrisia, até a das mães, era apresentada de forma impiedosa:

 

“Virgília estava serena e risonha, tinha o aspecto das vidas imaculadas. Nenhum olhar suspeito, nenhum gesto que pudesse denunciar nada; uma igualdade de palavra e de espírito, uma domi­nação sobre si mesma, que pareciam e talvez fossem raras. Como tocássemos, casualmente, nuns amores ilegítimos, meio secretos, meio divulgados, vi‑a falar com desdém, e um pouco de indigna­ção da mulher de que se tratava, aliás sua amiga. O filho sentia‑se satisfeito, ouvindo aquela palavra digna e forte, e eu perguntava a mim mesmo o que diriam de nós os gaviões, se Buffon tivesse nas­cido gavião…” (MPBC, p. 420).

 

Sabemos que na biblioteca de Machado não foi encontrado ne­nhum texto de Freud. Contudo, principalmente em Brás Cubas, a solu­ção para o casamento de interesses é a mesma que apresentou Freud, em 1908, para a cura das doenças nervosas decorrentes do casamento ‑ a infidelidade conjugal. Virgília, a heroína infiel, é descrita aos dezesseis anos como talvez a mais atrevida criatura da nossa espécie, e, com cer­teza, a mais voluntariosa, pois, apesar de toda a educação repressiva que impedia que as mulheres se ocupassem de temas sexuais, ela não seguia essas recomendações, ou as cumpria dentro do possível. A curiosidade sexual, na época, era algo pouco feminino e um claro indício de um comportamento pecaminoso; tinha que ser afastada do campo do pensa­mento da mulher. Quando muito, poderia vir atrelada à noção de um sexo de características simplesmente reprodutoras ‑ aspiração à mater­nidade, não ao sexo prazeroso. Este tipo de ignorância a que eram con­denadas as mulheres estendia‑se, além do campo sexual. “Assim a edu­cação as afasta de qualquer forma de pensar, e o conhecimento perde para elas o valor” (Freud, 1908, p. 203). Não é à toa que Machado, apesar de preparar o terreno para as ações futuras de Virgília, ao dizê-la “atrevida e voluntariosa”, também nos diz: “faceira, ignorante, pueril” (MPBC, p. 450). Dentro deste contexto de desvalorização do persona­gem feminino, a mãe de Brás Cubas seguia a norma: “uma senhora fra­ca, de pouco cérebro e muito coração”, aliados ao principal ingrediente: “o marido era na terra o seu Deus” (MPBC, p. 428). Uma tal mãe não dignificaria muito a figura feminina, daí Brás nunca ter podido escolher uma mulher para, efetivamente, se casar.

 

Conforme afirmou Freud em Um tipo especial de escolha de ob­jeto (19 10), existem certas condições necessárias ao amor, cuja combi­nação é pouco compreensível, e, por vezes, só podem ser entendidas à luz da psicanálise. Uma das precondições de que falava Freud era a de que um certo tipo de escolha amorosa feita pelos homens estava intima­mente vinculado à possibilidade de “existir uma terceira pessoa prejudi­cada” (p. 150) Este tipo de escolha implica que uma mulher solteira, sem compromisso, não produz o mesmo tipo de desejo que uma que esteja apalavrada, noiva ou casada. Seu interesse prende‑se à existência de um terceiro, que “possa reivindicar direitos de posse” (p. 150). Em alguns casos mais evidentes, uma mulher pode não despertar nenhuma intenção enquanto estiver livre e desimpedida, contudo “toma‑se objeto de sentimentos apaixonados, tão logo estabeleça um desses relaciona­mentos com outro homem” (p. 150). É um tipo de sintoma que traz o gozo da vitória narcísica sobre o pai, a ilusória vitória que faz o amante sentir‑se, de forma inconsciente, não mais um terceiro excluído ‑ o ex­cluído é outro. Obviamente que qualquer escolha amorosa está marcada pelo objeto original desejado e interditado, todavia a satisfação não pode      jamais ser alcançada, daí a seqüência de objetos substitutivos que determi nadas pessoas colocam em suas vidas. Estão sempre na ilusão de que vão, em determinado momento, encontrar o parceiro ideal, esquecendo­-se de que, ideal, só o objeto impossível. Esse deslizamento metonímico do  desejo é nesses casos levado ao extremo, já que a própria condição de manter uma série infindável de parceiros implica em não se ser fiel a nenhum; no entanto, mantém‑se a fidelidade ao primeiro, que está fora da série.

 

Brás Cubas foi caracterizado por Machado corno uma criança agressiva, era chamado de menino diabo. Era como contava: “um do, mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso” (MPBC, p.427). Maltratava o moleque Prudêncio, fazendo‑o de cavalo, montava no dorso do escravo e fustigava‑o com uma vara. Dava-­lhe voltas; e a tudo o escravo obedecia gemendo: “ai, nhonhô ‑ ao que eu retorquia: Cala a boca, besta!” (MPBC, p. 427). Ao crescer tornou‑se “opiniático, egoísta e algo contemptor dos homens” (MPBC, p. 427). Outrossim, interessou‑se pela injustiça humana ‑ “inclinei‑me a atenuá-la, a explicá‑la, a classificá‑la por partes, a entendê‑la, não segundo um padrão rígido, mas ao sabor das circunstâncias e lugares” (MPBC, p. 427‑8). Seu pai não punha limites às suas diatribes, ao contrário, achava graça, ao mesmo tempo que lhe incutia uma moralidade baseada nas aparências, na regência do juízo do outro: “Teme a obscuridade ( … ) Olha que os homens valem por diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros homens” (MPBC, p. 45 1). Sobre sua mãe sabemos que era uma mulher fraca, submissa, pouco inteligen­te e religiosa. Em suma, havia tido uma educação “no geral viciosa, incompleta, e, em partes negativa” (MPBC, p. 428).

 

“Como para Machado o ser humano é imperfeito por natu­reza (aqui é oportuno lembrar as palavras do narrador de Esaú e Jacó: a ocasião faz o furto, o ladrão já nasce feito), a construção de suas personagens femininas se faz a partir desse princípio ( … ) Machado carrega nas tintas do ceticismo, construindo personagens ambíguas, dissimuladas, quando não declaradamente traidoras” (Xavier, E., 1994, p. 53).

 

Machado, com seu texto, dessacralizava a instituição do casamen­to, colocava‑o como um jogo de interesses, pelo qual antes havia um sonho de Cinderela à espera. do príncipe, comum a um tipo de literatura para moças cujo fim era previsível, açucarado e um pouco distante da realidade. “Ele apertou‑a nos braços, apaixonadamente, murmurando num beijo: ‑ Sempre vieste a mim, menina, querida e cruel! Conseguiste, finalmente perdoar!” (Delly, M., 1938, p. 261)28. Em princípio, Marcela e Virgília jamais poderiam ser colocadas como heroínas de tal literatura, o pudor da época não permitiria. Contudo a literatura, através de Machado, Flaubert, Balzac, Eça e outros, traz, juntamente com Freud, para o centro das discussões, a questão da sexualidade feminina. Surge uma mulher que quer poder escolher a forma de gozar, apesar de, algu­mas vezes, ao não poder dizer do seu desejo, fazer convergir para o corpo o protesto da sua sexualidade insatisfeita: foi o tempo das histerias. Todavia, é bom lembrar que muitas mulheres que utilizaram o adultério nada mais conseguiram do que manter‑se sob o domínio de outro ho­mem ‑ submetida a dois senhores, aviltada psíquica e socialmente.

 

“Em uma esfera mais reflexiva, a mesma literatura que apon­tava o amor como a maior realização da vida feminina, dava conta da pobreza e da frustração que advinha de se jogar todas as fichas no casamento, e revelava o desejo ainda disforme de muitas mu­lheres, de se tomarem sujeitos de suas próprias vidas, “autoras” de suas aventuras pessoais, em consonância com os ideais de autono­mia e liberdade individual que a modernidade há muito tempo vi­nha oferecendo aos homens” (Kehl, M. R. 1998, p. 118).

 

A literatura machadiana contribuía para a antecipação do novo mundo feminino. Esse tipo de leitura levava a mulher a antecipar sua vida, identificando‑se com as heroínas e anti‑heroínas.

 

Virgília era o tipo de mulher que permitia uma fácil identificação das leitoras, já que, como a maioria das mulheres de sua época, vivia reclusa, tinha pouco estudo, e sua principal meta era um casamento com o que se chamava um bom partido; se houvesse amor, melhor, mas não era o principal. A questão do amor era secundária, como o foi durante muito tempo. Era um luxo que muitas mulheres não tinham. A solução encontrada por Machado foi diferente. Não encontramos crises histéri­cas ou paralisias, Machado fez Virgília apaixonar‑se por Brás, criando assim uma possibilidade de cisão ‑ amor/casamento ‑ ou seja, pelo fato de essas coisas não andarem juntas, não quer dizer que não se possa tê-las. É verdade que os riscos impõem certos sobressaltos, contudo, entre ter um amante e um sintoma histérico, o autor preferiu o caminho do amante. É melhor gozar na cama do que no sintoma. O outro lugar de gozo seria receber do imperador, através do marido, o título de marque­sa. É um outro tipo de gozo, um gozo narcísico em que ao procurar a admiração e a inveja do outro, através dessa insígnia fálica, leva‑se ao êxtase alguém que valoriza enormemente o juízo do outro, inflacionando de forma vã e chã o seu narcisismo secundário.

 

Conforme afirmava Freud em Moral sexual “civilizada ” e doen­ça nervosa moderna (1908), a chamada moral sexual dupla, em referência a uma diferença de moralidade entre homens e mulheres, era a prova mais evidente da impossibilidade de o grupo social obedecer aos precei­tos que estabelecia. Ou seja, a infidelidade feminina, apesar de moral­mente inadequada, era uma solução, que seria mais facilmente utilizá­vel dependendo do tipo de educação que tivesse recebido uma jovem.

 

” … a cura das doenças nervosas decorrentes do casamento estaria na infidelidade conjugal; porém, quanto mais severa hou­ver sido a educação da jovem e mais seriamente ela se submeter às exigências da civilização, mais receará recorrer a essa saída; no conflito entre seus desejos e seu sentimento de dever, mais uma vez se refugiará na neurose. Nada protegerá sua virtude tão eficaz­mente quanto uma doença. Dessa forma o matrimônio, que é ofe­recido ao instinto (pulsão) sexual do jovem civilizado como uma consolação, mostra‑se inadequado mesmo durante o seu decurso, não havendo sequer possibilidades de que possa compensar as pri­vações anteriores” (p. 200).

 

Segundo Freud (1929‑30), o ser humano está sempre em busca de “poder, sucesso e riqueza” (p. 81), bem como admira e inveja os que possuem aquilo a que aspira. Ele é governado por paixões, com um ego que mantém relações conflituosas com o id e o superego. Um ego a princípio de prazer e posteriormente, tendo que se render às imposições do princípio de realidade, provocando infindáveis frustrações e sofri­mentos. Surge para o homem a necessidade de fazer o ego afastar‑se de todo o sofrimento e desprazer, bem como de ter sensações de prazer de modo mais amplo ‑ ser feliz. Contudo, a observação nos mostra que esses momentos de satisfação plena são fortuitos, são, “por sua nature­za, possível apenas como uma manifestação episódica” (p. 95). Os so­frimentos nos ameaçam a partir de três direções: do nosso próprio cor­po, do mundo externo e das relações com os outros homens. Conforme lembrava Freud, este último, o das relações com os outros, era o mais penoso de todos. Sabemos que um dos maiores sofrimentos a que está condenado o homem é a perda daquele a quem ama.

 

“… ele se tomou dependente, de uma forma muito perigosa, de uma parte do mundo externo, isto é, de seu objeto amoroso escolhido, expondo‑se a um sofrimento extremo, caso fosse rejeitado por esse objeto ou o perdesse através da infidelidade ou da morte” (p. 122).

 

A civilização vai insistir, na questão das restrições quanto ao amor e ao gozo sexual, na legitimidade e na monogamia. Para ela, os amores sexuais só podem encontrar sua realização numa relação de vínculo úni­co, em que fica ressaltada a propagação da espécie em detrimento do puro prazer. Contudo, sabemos que a imposição de qualquer regra im­plica em sua desobediência latente. Um casal apaixonado não necessita de um filho para torná-lo feliz, já dizia Freud em 1930. Entretanto, ao lado dessa disposição amorosa presidida por Eros, trabalha, em silêncio, envolvida com esse mesmo Eros, Tanatus. A disposição agressiva já estava assinalada há muito por Freud que, em O instinto gregário (1921), afirmava que, na base da fraternidade, estava o ódio, a rivalidade narcísica, base dos quadros paranóides, como também, em O mal‑estar na civilização (1929‑30), dizia que o outro era alguém com uma grande dose de agressividade, que poderia atacá‑lo, escravizá‑lo, abusar do seu corpo, humilhá‑lo, torturá‑lo e matá‑lo ‑ “Homo homini lupus!” (p. 133).

 

Brás Cubas é rejeitado por Virgília em favor de Lobo Neves, contudo sua ferida narcísica é suturada quando se torna amante da mulher do rival. O que a princípio aparecera como despeito e mal‑estar, tornou‑se satisfação e vitória. O preceito da luta e da competição inerentes à espécie humana se faz presente ‑ “a hostilidade primária dos seres humanos” (p. 134).

 

“O caso dos meus amores andava mais público do que eu podia supor ( … ) Virgília era um belo erro, e é tão fácil confessar um belo erro! Costumava ficar carrancudo, a princípio, quando ouvia alguma alusão aos nossos amores; mas, palavra de honra! Sentia cá dentro uma impressão suave e lisonjeira…” (MPBC, p. 496).

 

Se a civilização impõe grande quantidade de sacrifícios não só à agressividade das pessoas, como também à sua sexualidade, como já dissemos, a lei existe para regular estes dois desejos. Temos que consi­derar a questão do juízo do outro, ou, em linguagem corrente, a opinião pública. Qualquer cultura estabelece normas pelas quais o homem deve se balizar para ter a aceitação dos demais e como um dos aspectos de seu acesso à felicidade. Ter o respeito dos outros é uma meta desejável e à qual todos aspiram. Claro está que tem que se trocar um pouco de felicidade por segurança, e que a segurança implica em certas priva­ções. Para se ter o reconhecimento, o amor dos pais, a criança teve que procurar se conformar e adequar aos parâmetros apresentados por eles ‑estabeleceu‑se um ideal pelo qual deveria balizar‑se para, na introjeção desses ideais, saber como se comportar na sociedade. A fruição narcísica decorrente dos delírios de onipotência infantis oriundos do sadismo desta fase tem que encontrar um limite no discurso das ameaças parentais, que possibilitará a construção de uma instância crítica ‑ o superego ‑. portador tanto das interdições quanto dos ideais. A civilização vai tentar dar uma organização a essas pulsões destrutivas. ” … a hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra cada um, se opõe a esse progra­ma da civilização” (Freud, 1929‑30, p. 145).

 

No texto machadiano, o sentimento de culpa, inerente ao descumprimento das leis da cultura, parece inexistente tanto em Brás Cubas quanto em Virgília. “Às vezes sentia um dentezinho de remorso; parecia-­me que abusava da fraqueza de uma mulher amante e culpada, sem nada sacrificar nem arriscar de mim próprio…” (BC, p 493). Machado dá muito pouca relevância à questão da culpa ‑ num reformador como ele, talvez quisesse chocar, dando às leitoras, na contestação à ordem estabelecida, à moral vigente, uma sensação de normalidade. A questão da opinião públi­ca é o discurso do juízo do outro frente às exigências de uma idêntica conduta sexual para todos, a qual pode ser cumprida por uns sem muitas dificuldades, por outros com mais dificuldades, e não cumprida por mui­tos. Brás e Virgília situam‑se na classe de

 

“pessoas que habitualmente se permitem fazer qualquer coisa má que lhes prometa prazer, enquanto se sentem seguras de que a autoridade nada saberá a respeito, ou não poderá culpá‑las por isso; só têm medo de serem descobertas” (Freud, 1929‑30, p. 148).

 

Brás e Virgília têm medo de que Lobo Neves saiba do caso amo­roso, contudo, ao saber do romance, o marido não quer acreditar, a prin­cípio; todavia, mesmo sabendo, através de uma carta anônima, não con­segue agir, com medo da crítica social:

 

” … a suspeita era pública. Esse homem, aliás intrépido, era agora a mais frágil das criaturas. Talvez a imaginação lhe mostrou, ao longe, o famoso olho da opinião. A fitá‑lo sarcasticamente, com ar de pulha; talvez a boca invisível lhe repetiu ao ouvido as chufas que ele escutara ou dissera outrora. Instou com a mulher que lhe confessasse tudo, porque tudo lhe perdoaria” (MPBC, p. 508).

 

Machado apresenta Lobo Neves como um homem que, em virtu­de do medo de ser publicamente ridicularizado, não consegue reagir à traição da mulher, aceita o que o destino lhe impôs. Isto fez com que as preocupações de Brás fossem aos poucos diminuindo. Como assinalava Freud, enquanto tudo corre bem com um homem, a sua consciência é lenitiva e permite que o ego faça todo o tipo de coisas. Entretanto, quan­do o infortúnio lhe sobrevém, ele busca sua alma, reconhece sua pecaminosidade, eleva as exigências de sua consciência, impõe‑se abs­tinência e se castiga com penitências. Curva‑se ante o superego, o desti­no e o agente parental. Entretanto, o superego, que fustiga o ego pecador e fica à espreita para poder castigá‑lo de uma forma exemplar tão logo seja possível, ao que parece não se manifestou muito claramente, produ­ziu apenas uma certa ansiedade nos amantes. Para Brás, o fim do roman­ce com Virgília apenas provoca uma sensação de perda: “a partida de Virgília deu‑me uma amostra da viuvez” (MPBC, p. 520). No entanto, ao que parece, não foi um luto penosamente elaborado.

 

Há um comentário que não pode deixar de ser feito, pois denota de forma clara, o quanto Machado conseguia, através de uma forma. extremamente concisa, mostrar as diferenças nesse tipo de romance.

 

“E com tanto maior prazer o confesso, quanto que as mulhe­res é que têm fama de indiscretas, e não quero acabar o livro sem retificar essa noção do espírito humano. Em pontos de aventura amorosa, achei homens que sorriam, ou negavam a custo, de um modo frio, monossilábico, etc., ao passo que as parceiras não da­vam por si, e jurariam aos Santos Evangelhos que era tudo uma calúnia. A razão desta diferença é que a mulher (salva a hipótese do capítulo CI e outras) entrega‑se por amor, ou seja o amor‑pai­xão de Stendhal, ou o puramente físico de algumas damas roma­nas, por exemplo, ou polinésias, lapônias, cafres, e pode ser que outras raças civilizadas; mas o homem, ‑ falo do homem de uma sociedade culta e elegante, ‑ o homem conjuga sua vaidade ao ou­tro sentimento. Além disso (e refiro‑me sempre aos casos defesos), a mulher, quando ama outro homem, parece‑lhe que mente a um dever, e portanto tem de dissimular com arte maior, tem de refinar a aleivosia; ao passo que o homem, sentindo‑se causa da infração e vencedor de outro homem, fica legitimamente orgulhoso, e logo passa a outro sentimento menos ríspido e menos secreto, ‑ essa boa fatui­dade, que a transpiração luminosa do mérito” (MPBC, p. 531‑2).

 

Machado, por já estar com uma acentuada percepção do funcio­namento do psiquismo humano, não valorizou a questão da culpa, pelo contrário, tentou fazer, não um juízo crítico, mas um juízo compreensi­vo do triângulo amoroso. Ele mostra, na passagem citada acima, a dife­rença entre homens e mulheres na questão do amor adulterino. O ho­mem junta ao amor a necessidade de ser admirado por suas conquistas. A mulher toma‑se um troféu que, por vezes declaradamente, e por ou­tras mais timidamente, gosta de, vaidosamente, exibir. As suas conquis­tas são para serem apreciadas, o que lhe aumenta a importância como macho ao produzir não só a admiração, como a inveja dos outros ho­mens. Conforme assinala Machado, os homens nem sempre primam pela discrição. A mulher, quando ama um homem que não é o seu, não pode declarar de público e sofre mais por isso. Sofre não só pela depreciação social a que fica sujeita, bem como seu superego a açoita por transgredir as normas societárias. Fica estabelecida uma guerra entre a repressão e o desejo. Uma guerra, visto que o adultério é uma ação que obedece a dois desejos: o de amar e o de contestar; pois, em termos freudianos, teríamos uma fusão da pulsão erótica com a pulsão tanática. Sou livre para amar quem quero, mesmo contra as ordens daqueles que fazem as leis ‑ pais e maridos, no entanto essa liberdade no amor vai, através da repressão, produzir sanções, sejam internas, do seu mundo psíquico, sejam da sociedade.

 

Machado não se ateve às questões morais, pelo contrário, critica­-as por todo o texto. Ele torna‑se importante, neste final, pela agudeza da percepção dos aspectos da subjetividade do ser. Faz sobre o homem um juízo compreensivo, em detrimento de um juízo crítico.

 

6.2 ‑ MARCELA, uma dama espanhola

 

“… mais de uma dama inclinou diante de mim a fronte pen­sativa, ou levantou para mim os olhos cobiçosos. De todas porém a que me cativou logo foi uma… não sei se diga; este livro é casto, ao menos na intenção; na intenção é castíssimo. Mas vá lá; ou se há de dizer tudo ou nada. A que me cativou foi uma dama espanhola, Marcela, a linda Marcela, como lhe chamavam os rapazes do tempo. ( … ) Marcela não possuía a inocência rústica, e mal chegava a entender a moral do código. Era boa moça, lépida, sem escrúpu­los, um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que não permitia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e berlindas; luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes. ( … ) um corpo esbelto, ondulante, um desgarre, alguma cousa que nunca se acha nas mulheres puras” (MPBC, p. 433).

 

Em 1910, Freud, em Um tipo de escolha de objeto feita pelos homens, afirmou que a respeitabilidade e a pureza são atributos mater­nos, são qualidades do objeto interditado.

 


” … a mulher casta e de reputação irrepreensível nunca exerce atração que a possa levar à condição de objeto amoroso, mas apenas a mulher que é, de uma ou outra forma, sexualmente de má reputa­ção, cuja fidelidade e integridade estão postas em dúvida” (p. 150).

 

Explicitando melhor: a qualidade do respeitável, do puro, é uma qualidade que o ser humano oferece a sua instância superegóica, visan­do disfarçar e negar o incontrolável desejo que o objeto materno lhe proporciona. A paixão arrebatadora pelo ser maternal necessita de uma sublimação, sendo necessário dar outro destino a essa pulsão. O desejo intenso sofre uma repressão, impossibilita totalmente o incesto, man­tendo a libido que se fixou nesse objeto primário, inconsciente. Novas fantasias são assim erigidas, dirigindo as cargas libidinais a objetos subs­titutos. O dito popular de que a mulher deve ser uma prostituta na cama é ilustrativo dessa cisão a ser feita, visando a se poder usufruir do sexo sem o fantasma do desejo pela mãe.

 

Segundo Nickie Roberts, as prostitutas são mulheres interessan­tes e “foram as primeiras a dizer “Não” ao domínio patriarcal” (p. 17). As hipóteses de Roberts são consubstanciadas em sua própria experiên­cia como prostituta, bem como em fartas referências, pelas quais preten­de demonstrar que uma abordagem imediata e simplista sobre o tema não pode dar conta de toda a sua significação para a sociedade. Não é preciso dizer que a proposta maniqueísta de uma divisão entre honestas e desonestas é muito anterior às Contribuições à psicologia do amor (1910) de Freud. O amor à prostituta em evidente oposição ao amor edípico interditado é algo presente desde tempos remotos. O código de Lipit‑Ishtar, existente na Suméria em 2000 a.C., já preconizava uma cla­ra distinção entre a esposa e a prostituta, recomendando explicitamente, entre outras regras, que: “enquanto a esposa viver, a prostituta não deve­rá morar na casa junto com a esposa” (Roberts, p. 27). A crescente influ­ência do pensamento religioso na sociedade, seu envolvimento com as práticas políticas, fez com que a divisão fosse sendo cada vez mais acen­tuada. O casamento de modelo patriarcal, no qual a mulher tornava‑se propriedade privada do homem, contribuía para afastar do cenário do­méstico essas mulheres sem dono. As esposas, mulheres domesticadas, controladas e abusadas sexualmente, não tinham direito a reivindicar um pleno gozo sexual caso o marido fosse impotente ‑ e não era incomum a sífilis que a provocava. Ela teria que se contentar, e de forma muito disfarçada, com a masturbação, sendo vista como perfeitamente saudá­vel uma completa abstinência sexual. Ou teria que sublimar a pulsão sexual através da dedicação aos filhos, à igreja, aos pobres, como regra. Impensável seria a escolha de um outro parceiro; aceitava‑se, muito a contragosto, um outro casamento.

 

Contudo, nunca é demais lembrar que, mesmo em nossa cultura cosmopolita do século XX, há bem pouco tempo, por volta dos anos cinqüenta, as escolas religiosas das grandes capitais brasileiras não acei­tavam filhos de casais desquitados. Como sempre, o peso maior recaía sobre a mulher desquitada. Esta tornava‑se o símbolo da ameaça sexual, sendo sua entrada vetada em lares distintos, honestos e católicos.

 

Aos homens era permitido, caso tivessem uma esposa frígida ou se sentissem entediados, recorrer às relações sexuais com prostitutas. Estas sempre ficavam, no discurso masculino, numa posição desqualificada. No entanto, por outro lado, eram mulheres que, pelos mais diversos motivos, não haviam se submetido à autoridade patriarcal, não haviam se rendido à domesticação. Apesar de, no discurso masculino, elas se apresentarem rebaixadas e sem nenhum valor, ao mesmo tempo, geram uma ameaça exatamente por terem contestado as normas vigentes. Ou seja, elas passam, no imaginário masculino, a ser um objeto desejado e temido.

 

Entretanto, num exame mais profundo do psiquismo dessas mu­lheres que se dedicam à prostituição, percebe‑se que a grande maioria é originária de classes que não tiveram oportunidades de acesso aos bens da cultura e, como tal, poucas são as revolucionárias que apregoa Roberts. A maioria quer um marido, um lar e filhos ‑ aspira a ser aceita como esposa e honesta, sair da dita (pelos homens) vida fácil.

 

A prostituição parece ser mais uma forma de se submeter às exi­gências de uma sociedade machista e exploradora, que encontra nas mulheres o barro com que molda um brinquedo para os homens. Con­forme disse Peter Gay, durante o século XIX a prostituição estava pre­sente em quase todos os lugares, nas ruas, nos cafés, nos teatros ‑ “o sexo venal era uma presença conspícua e perturbadora” (Gay, Peter. 1986, p. 305). Naquele tempo, contudo, a prostituição era uma atividade que envolvia uma grande parcela de fantasia, alimentando um imaginário social em que predominavam, no chamado demi‑monde, fantasias de grandes prostitutas, maravilhosas mulheres que ganhavam dinheiro fácil junto a príncipes e banqueiros. Estas grandes horizontales de fato existiam, contudo sua carreira não era tão cintilante quanto preconiza­vam os comentários da época. Esses discursos eram formas disfarçadas de se apresentar a questão: na verdade, predominava uma classe de mu­lheres que havia iniciado sua vida de prostituição por volta dos quatorze anos, após a menarca. Um negócio que oferecia um largo espectro de atividades, para os mais diferentes gostos e bolsos. No entanto, infeliz­mente, como disseram G. S. Rousseau e Roy Porter (1987), havia aspec­tos que sempre estavam presentes nesse tipo de mundo: bebedeiras, cri­mes, cafetões, ambientes inseguros, enfim, perigos de todas as ordens.

 

Marcela está mais para uma cortesã de luxo do que para uma prostituta de bordel, não sofre as agruras de uma vida em que a tônica é uma série de sofrimentos: degradação psíquica, prisões, alcoolismo, doenças venéreas, abortos, filhos indesejáveis e morte prematura. Tudo isso é muito diferente do tipo de prostituta apresentada pela literatura machadiana. Talvez Machado a tenha assim colocado em virtude não só do contexto de classe média alta em que se situa Brás Cubas, como também porque se imagina que não era freqüentador de bordéis. Con­forme comentou Ingrit Stein (1984), o número de mulheres marginali­zadas nos romances de Machado é pequeno, estando presentes, de for­ma secundária, nos cinco primeiros romances. A vida de Marcela não se parece muito com a vida da maioria das prostitutas no Rio de Janei­ro em 1822, onde grande parte não tinha aposentos para levar os clien­tes, utilizava a hospedaria mais próxima ou a rua mesmo. Marcela vivia muito bem:

 

“A casa onde morava, nos Cajueiros, era própria. Eram sóli­dos e bons os móveis, de jacarandá lavrado, e todas as demais al­faias, espelhos, jarras, baixela, ‑ uma linda baixela da índia, que lhe havia dado um desembargador. Baixela do diabo, deste‑me gran­des repelões aos nervos. Disse‑o muita vez à própria dona; não lhe dissimulava o tédio que me faziam esses e outros despojos de seus amores de antanho” (MPBC, p. 435).

 

Conforme afirmou ainda o historiador Peter Gay, no decorrer do século XVIII, a prostituta teve uma ascensão social, um novo papel na sociedade, em virtude de uma reorganização dos papéis masculino e feminino quanto aos modelos de casamento e de criação dos filhos, bem como também devido ao surgimento de cidades com mais de 500 mil habitantes. As mulheres casadas que, inicialmente, “eram consideradas prostitutas em potencial” (p. 99) e necessitavam ser vigiadas, foram deixando de sê‑lo, ou seja, este papel social da mulher começou a ganhar novos contornos. Alia‑se o fato de que algumas moças solteiras começaram a ir para as ruas trabalhar como prostitutas. Muitas moças tiradas das ruas de Londres pelos juízes eram órfãs, filhas de pobres e que se iniciaram entre 12 e 14 anos, muitas ficando grávidas ou doentes, devido aos tristes efeitos da prostituição.

 

Não se pode deixar de associar ao tema da prostituição um dos maiores fantasmas do mundo dos homens ‑ a impotência. Em suas Contribuições à psicologia do amor, Freud (1910) assinalou que a impotência psíquica é um sintoma decorrente da impossibilidade de se combinarem as correntes afetiva e sexual no amor, devido à pregnância das fantasias incestuosas frente ao objeto do desejo atual. Essas fantasias, resultantes de severas fixações infantis e da realidade do tabu do incesto, são uma “condição universal da civilização e não uma perturbação circunscrita a alguns indivíduos” (p. 167). Contudo, se todos os homens estão condenados a este sintoma, a impotência, que fala de uma permanente ameaça de castração, sabemos que alguns sucumbem de forma muito mais ruidosa e perturbadora que outros. Devido à intensidade das fantasias, não puderam encontrar uma força egóica suficientemente contendora para mantê‑las, pelo menos, a maior parte do tempo, afastadas da consciência, ou melhor, da pré‑consciência, já que a sua ação não é assim tão clara. Ele fica impotente quando frente ao objeto, algo o remete ao passado, fazendo‑o retornar a fantasias que deveriam ter permanecido inconscientes. Fantasias que surgem em virtude de algum enganchamento do objeto do desejo atual no objeto arcaico incestuoso.

 

“… o estranho malogro, demonstrado na impotência psíquica, faz seu aparecimento sempre que um objeto, que foi escolhido com a finalidade de evitar o incesto, relembra o objeto proibido através de alguma característica, freqüentemente imperceptível” (p. 166).

 

Isso ocorre com aqueles que, quando amam, não podem desejar, e quando desejam, não amam ‑ são aqueles que levam muito longe a neu­rose do amor à prostituta. Amar as prostitutas é mais seguro, dizem os homens ao imaginarem estar protegendo a instituição do matrimônio e a família. Elas nada exigem, paga‑se e terminou; contudo, não se dão con­ta de que a única e importante proteção que oferecem as prostitutas é ao desejo incestuoso.

 

Brás Cubas apaixonou‑se, ainda jovem, por Marcela, uma prosti­tuta a quem o pai ajudava a sustentar, numa clara condescendência para com o filho homem,

 

“… Era meu universo; mas, ai triste! não o era de graça. Foi­-me preciso coligir dinheiro, multiplicá‑lo, inventá‑lo. Primeiro ex­plorei as larguezas de meu pai; ele dava‑me tudo o que eu lhe pe­dia, sem repressão, sem demora, sem frieza; dizia a todos que eu era rapaz e que ele o fora também” (MPBC, p. 435).

 

Machado nos fala de uma condescendência, contudo os gastos desmedidos poderiam denunciar mais que um estouvamento juvenil, poderiam comprometer o nome da família numa ligação apaixonada e duradoura, todavia, moralmente indesejável ‑ “Vês, peralta? é assim que um moço deve zelar pelo nome dos seus?” (MPBC, p. 437). Podiam-­se, na burguesia de Brás Cubas, ter prostitutas, manter‑se numa vida de rapaz solteiro. Conforme assinala Marilena Chauí, o pai de família dos anos 20, da alta burguesia, solucionava, muitas vezes, o problema da iniciação sexual dos seus filhos homens, contratando uma preceptora alemã para, cuidadosamente, e de “modo higiênico, afetuoso, hábil, lento, gradual e seguro” (Chauí, M., 1984, p. 81), iniciá‑lo nas delícias do sexo. Entretanto, não se podiam permitir, e o pai o fez voltar à realidade, exibições narcísicas de poder com o dinheiro paterno.

 

“Marcela amou‑me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos. Meu pai logo que teve a aragem dos onze contos, sobressaltou‑se deveras; achou que o caso excedia as raias de um capricho juvenil.

 

‑ Desta vez, disse ele, vais para a Europa; vais cursar uma Universidade, provavelmente Coimbra; quero‑te para homem sério e não para arruador e gatuno. E como eu fizesse um gesto de espanto: ‑ Gatuno, sim, senhor; não é outra cousa um filho que me faz isto…” (MPBC, p. 437).

Extravagâncias eram aceitas, mas até certo ponto, porque essas extravagâncias financeiras podiam ser indícios de paixões juvenis peri­gosas, indesejáveis, inconseqüentes. “Toda a natureza bradava que era preciso levar Marcela comigo” (MPBC, p. 438). Sabemos que jovens apaixonados, costumeiramente, não avaliam a situação com critérios sen­satos. Necessitam criar a ilusão de serem amados, imaginam‑se amados com a mesma intensidade juvenil com que amam. Negam o numerário despendido, através do seu protesto viril, nos grandiosos presentes que oferecem à suas amadas em seus romances, como nos mostra Machado.

 

“Certo é que os diamantes corrompiam‑me um pouco a felici­dade; mas não é menos certo que uma dama bonita pode muito bem amar os gregos e seus presentes. E depois eu confiava na minha boa Marcela; podia ter defeitos, mas amava‑me” (MPBC, p. 439).

 

Estas paixões adolescentes também podem muitas vezes levar a soluções exasperadas, inflacionando neste quadro tragicômico o lado trágico.

 

“Três dias depois segui barra fora, abatido e mudo. Não cho­rava sequer; tinha uma idéia fixa… Malditas idéias fixas! A dessa ocasião era dar um mergulho no oceano, repetindo o nome de Marcela” (MPBC, p. 439).

 

As políticas eugênicas do século XIX, em razão principalmente da sífilis, levaram, no entanto, a uma associação entre prostituição e doença ‑ a prostituta era sempre uma mulher cheia de doenças. Émile Zola (s/d) encerra seu romance Naná com uma descrição que nos mos­tra o quanto essa associação era dominante no pensamento da sociedade novecentista: “os vírus colhidos por ela nas sarjetas, nos contatos malsãos que suportara, o fermento com que envenenara um povo, lhe subiam ao rosto e lhe apodreciam a beleza” (p. 347). Machado, homem do seu tempo, socialmente puritano, também não fugiu à regra, e Marcela aparece carcomida pela varíola e pela vida libertina que havia levado. Ape­sar de ser um crítico da sociedade, ele não encontrou outra saída para a personagem se não a do castigo no corpo, ou seja, o corpo que havia servido voluptuosamente aos homens agora era objeto de repugnância.

 

“Ao fundo, por trás do balcão, estava sentada urna mulher, cujo rosto amarelo e bexiguento não se destacava logo, à primeira vista; mas logo que se destacava era um espetáculo curioso. Não podia ter sido feia; ao contrário, via‑se que fora bonita, e não pou­co bonita; mas a doença e uma velhice precoce, destruíram‑lhe a flor das graças. As bexigas tinha sido terríveis; os sinais, grandes e muitos, faziam saliências e encamas, declives e aclives, e davam uma sensação de lixa grossa. Eram os olhos a melhor parte do vul­to, e aliás tinham uma expressão singular e repugnante, que mu­dou, entretanto, logo que eu comecei a falar. Quanto ao cabelo, estava ruço e quase tão poento como os portais da loja. Num dos dedos da mão esquerda fulgia‑lhe um diamante. Crê‑los‑eis, pósteros? essa mulher era Marcela” (MPBC, p. 458).

 

E, como que para fechar o capítulo referente a urna prostituta em fim de carreira, Machado, para que o leitor não se envolva em um clima piedoso a respeito da personagem, não fique compungido frente à sorte de Marcela, ao tornar conhecimento do mal‑estar de Brás Cubas diante do velha paixão juvenil ‑ “eu me sentia pungido e aborrecido ( … ) e ansiava por me ver fora daquela casa” (MPBC, p. 459), deu um toque final enfatizando não mais o pecado da luxúria, mas o da cobiça.

 

“Disse ela que desejava ter a proteção dos conhecidos de outro tempo; ponderou que mais tarde ou mais cedo era natural que me casasse, e afiançou que me daria finas jóias por preços baratos. Não disse preços baratos, mas usou uma metáfora delica­da e transparente. Entrei a desconfiar que não padecera nenhum desastre (salvo a moléstia), que tinha o dinheiro a bom recado, e que negociava com o único fim de acudir à paixão do lucro, que era o verme roedor daquela existência; foi isso mesmo que me dis­seram depois” (MPBC, p. 459).

 

Marcela “mal chegava a entender a moral do código” (MPBC, p. 433). Código criado pelos homens que permitiam que se estabelecesse, de forma ambígua, a prostituição. Numa sociedade que valorizava o sexo procriativo vinculado à família, necessitava‑se de mulheres que pudessem oferecer prazer sexual aos jovens solteiros e aos casados insatisfeitos.

 

“Porque não tem função procriadora, a prostituição (como as relações sexuais fora do casamento) é socialmente condenada. Ao mesmo tempo, porém, é tolerada e até mesmo estimulada nas sociedades que defendem a virgindade das meninas púberes soltei­ras, de um lado, mas que, de outro lado, precisam resolver as frus­trações sexuais dos jovens solteiros e dos homens que se conside­ram mal casados ou que foram educados para jamais confundirem suas honestas esposas com amantes voluptuosas e desavergonhadas” (Chauí, M, 1984, p. 80).

 

Freud, em 1910, trouxe uma interessante contribuição para que se pudesse entender um pouco mais a respeito das escolhas de objeto que fazem os homens, notadamente no que diz respeito ao que chamou o amor à prostituta. Sabemos que, conscientemente, os adultos pensam em suas mães como pessoas de conduta ilibada, de moral inatacável. Em conseqüência disso, uma das mais desagradáveis ofensas é ser cha­mado por outrem de filho da puta. No homem, o seu mundo interno também por vezes o ataca, ao colocar em sua fantasia algum aspecto luxurioso de sua mãe. Contudo, Freud irá investigar o desenvolvimento desses dois complexos, a relação inconsciente que está presente, de for­ma constante, na fantasia do homem: o da mãe e o da prostituta, que estão em oposição inclusiva. Desde a pré‑puberdade, quando começa a receber informações sexuais, se bem que da forma mais crua e desordenada, um menino se rebela contra a idéia de que seus pais fazem sexo. Este é um tema muitas vezes insuportável, já que o lança de forma muito incômoda em seu próprio desejo incestuoso ‑ e sabemos que nada é mais terrível que este tipo de desejo. A solução dada por Sófocles a seu personagem é a daquele que se inflige um castigo, se cegar, em virtude da prática incestuosa, algo tão hediondo! Ao ser iniciado nas conversas e piadas de cunho sexual, o menino torna conhecimento de que existem mulheres que vivem do sexo, o que lhe permite direcionar todo o seu mundo sexual fantasioso para este tipo de possibilidade, fa­zendo com que, em oposição ao discurso adulto corrente, ele as veja como desejadas e perigosas, ou, como disse Freud:

 

“… tão logo aprende que ele também pode ser iniciado por essas infelizes ( … ) as considera com um misto de desejo e horror. Quando, depois disto, já não pode mais nutrir qualquer dúvida que tornem seus pais uma exceção às normas universais e odiosas da atividade sexual, diz‑se a si próprio, com lógica cínica, que a dife­rença entre sua mãe e uma prostituta não tão grande, visto que, em essência, fazem a mesma coisa” (1910, p. 154).

 

Machado de Assis havia percebido, de forma inconsciente, o que Freud (1912) afirmava a respeito: a proibição da vida erótica das mulhe­res é comparável à necessidade que têm os homens de depreciar seu objeto de escolha sexual ‑ “…um corpo esbelto, ondulante, um desgarre, alguma cousa que nunca se achara nas mulheres puras” (MPBC, p. 433) ‑, já que os desejos pela mãe ao esbarrarem na lei da interdição o fazem, conscientemente e inconscientemente, estabelecer uma separação entre a mãe e a prostituta. Lembremo‑nos de que a mãe de Brás Cubas era “uma senhora fraca, de pouco cérebro e muito coração, assaz crédula, sinceramente piedosa” (MPBC, p. 428), nada denotando sensualidade ‑ é para ser amada sem ser desejada.

 

No curso da vida erótica, o ser humano, em virtude do interdito incestuoso, deverá modificar seus desejos sexuais em relação aos pais, transformando‑os em sentimentos afetuosos. Na puberdade poderá sur­gir um deleite por mulheres a quem respeita, no caso dos homens, mas que não o excitam, mostrando‑se sequioso de sexo com as que não ama. Na esfera do amor, verifica‑se uma conjugação das correntes sensuais com as afetuosas, podendo‑se medir a seriedade do amor pelo exame das partes das pulsões sexuais, inibidas em seu objetivo. Nas questões de amor, a idealização do objeto estará sempre presente ‑ livre de toda crítica o objeto é puro, é desejado pelos valores espirituais que possui; a sensualidade fica, em muitos casos, francamente escamoteada. A idealização do objeto aponta para uma conjugação do ego com o objeto.

 

Sabemos que o objeto materno é cindido exatamente porque está impregnado de um insuportável desejo. Pode‑se então dizer que o discurso machadiano, através de Brás Cubas, nada mais é do que uma denegação da sensualidade materna. Dividindo o objeto do desejo, a imago materna fica preservada do inaceitável desejo, e ele pode deslocá-­lo para mulheres, por vezes mais velhas, com isso podendo desejá‑las de forma ardorosa e sem limites.

 

Não podemos ser ingênuos e pensar que a prostituição é apenas uma invenção masculina. Ela é uma oportunidade a mais que o homem encontra para purgar as sua fantasias edípicas. A prostituição está a servi­ço, de forma totalmente inconsciente, do horror ao incesto. Uma situação resolutiva na medida em que produz, como afirma Freud (1910), um “contraste agudo entre a mãe e a prostituta” (p. 153).

 

Conforme afirmou ainda o historiador Peter Gay, no decorrer do século XVIII, a prostituta teve uma ascensão social, um novo papel na sociedade, em virtude de uma reorganização dos papéis masculino e feminino quanto aos modelos de casamento e de criação dos filhos, bem como também devido ao surgimento de cidades com mais de 500 mil habitantes. As mulheres casadas que, inicialmente, “eram consideradas prostitutas em potencial” (p. 99) e necessitavam ser vigiadas, foram dei­xando de sê-lo, ou seja, este papel social da mulher começou a ganhar novos contornos. Alia‑se o fato de que algumas moças solteiras come­çaram a ir para as ruas trabalhar como prostitutas. Muitas moças tiradas das ruas de Londres pelos juizes eram órfãs, filhas de pobres e que se iniciaram entre 12 e 14 anos, muitas ficando grávidas ou doentes, devi­do aos tristes efeitos da prostituição.

 

Não se pode deixar de associar ao tema da prostituição um dos maiores fantasmas do mundo dos homens ‑ a impotência. Em suas Contri­buições à psicologia do amor, Freud (1910) assinalou que a impotência psíquica é um sintoma decorrente da impossibilidade de se combinarem as correntes afetiva e sexual no amor, devido à pregnância das fantasias incestuosas frente ao objeto do desejo atual. Essas fantasias, resultantes de severas fixações infantis e da realidade do tabu do incesto, são uma “condi­ção universal da civilização e não uma perturbação circunscrita a alguns indivíduos” (p. 167). Contudo, se todos os homens estão condenados a este sintoma, a impotência, que fala de uma permanente ameaça de castração, sabemos que alguns sucumbem de forma muito mais ruidosa e perturbadora que outros. Devido à intensidade das fantasias, não puderam encontrar uma força egóica suficientemente contendora para mantê‑las, pelo menos, a maior parte do tempo, afastadas da consciência, ou melhor, da pré‑consciência, já que a sua ação não é assim tão clara. Ele fica impotente quando frente ao objeto, algo o remete ao passado, fazendo‑o retomar a fantasias que deveriam ter permanecido inconscientes. Fantasias que surgem em virtude de algum enganchamento do objeto do desejo atual no objeto arcaico incestuoso.

 

“… o estranho malogro, demonstrado na impotência psíquica, faz seu aparecimento sempre que um objeto, que foi escolhido com a finalidade de evitar o incesto, relembra o objeto proibido através de alguma característica, freqüentemente imperceptível” (p. 166).

 

Isso ocorre com aqueles que, quando amam, não podem desejar, quando desejam, não amam ‑ são aqueles que levam muito longe a neurose do amor à prostituta. Amar as prostitutas é mais seguro, dizem os homens ao imaginarem estar protegendo a instituição do matrimônio e família. Elas nada exigem, paga‑se e terminou; contudo, não se dão conta de que a única e importante proteção que oferecem as prostitutas é ao desejo incestuoso.

 

Brás Cubas apaixonou‑se, ainda jovem, por Marcela, uma prostituta a quem o pai ajudava a sustentar, numa clara condescendência pai.. com o filho homem,

 

“… Era meu universo; mas, ai triste! não o era de graça. Foi-­me preciso coligir dinheiro, multiplicá‑lo, inventá‑lo. Primeiro ex­plorei as larguezas de meu pai; ele dava‑me tudo o que eu lhe pe­dia, sem repressão, sem demora, sem frieza; dizia a todos que eu era rapaz e que ele o fora também” (MPBC, p. 435).

 

Machado nos fala de uma condescendência, contudo os gastos desmedidos poderiam denunciar mais que um estouvamento juvenil, poderiam comprometer o nome da família numa ligação apaixonada e duradoura, todavia, moralmente indesejável ‑ “Vês, peralta? é assim que um moço deve zelar pelo nome dos seus?” (MPBC, p. 437). Podiam-­se, na burguesia de Brás Cubas, ter prostitutas, manter‑se numa vida de rapaz solteiro. Conforme assinala Marilena Chauí, o pai de família dos anos 20, da alta burguesia, solucionava, muitas vezes, o problema da iniciação sexual dos seus filhos homens, contratando uma preceptora alemã para, cuidadosamente, e de “modo higiênico, afetuoso, hábil, len­to, gradual e seguro” (Chauí, M., 1984, p. 81), iniciá‑lo nas delícias do sexo. Entretanto, não se podiam permitir, e o pai o fez voltar à realidade, exibições narcísicas de poder com o dinheiro paterno.

 

“Marcela amou‑me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos. Meu pai logo que teve a aragem dos onze contos, sobressaltou‑se deveras; achou que o caso excedia as raias de um capricho juvenil.

 

‑ Desta vez, disse ele, vais para a Europa; vais cursar uma Universidade, provavelmente Coimbra; quero‑te para homem sério e não para arruador e gatuno. E como eu fizesse um gesto de espanto: ‑ Gatuno, sim, senhor; não é outra cousa um filho que me faz isto…” (MPBC, p. 437).

 

Extravagâncias eram aceitas, mas até certo ponto, porque essas extravagâncias financeiras podiam ser indícios de paixões juvenis peri­gosas, indesejáveis, inconseqüentes. “Toda a natureza bradava que era preciso levar Marcela comigo” (MPBC, p. 438). Sabemos que jovens apaixonados, costumeiramente, não avaliam a situação com critérios sen­satos. Necessitam criar a ilusão de serem amados, imaginam‑se amados com a mesma intensidade juvenil com que amam. Negam o numerário despendido, através do seu protesto viril, nos grandiosos presentes que oferecem à suas arriadas em seus romances, como nos mostra Machado.

 

“Certo é que os diamantes corrompiam‑me um pouco a felici­dade; mas não é menos certo que uma dama bonita pode muito bem amar os gregos e seus presentes. E depois eu confiava na minha boa Marcela; podia ter defeitos, mas amava‑me” (MPBC, p. 439).

 

Estas paixões adolescentes também podem muitas vezes levar a soluções exasperadas, inflacionando neste quadro tragicômico o lado trágico.

 

“Três dias depois segui barra fora, abatido e mudo. Não cho­rava sequer; tinha uma idéia rixa… Malditas idéias fixas! A dessa ocasião era dar um mergulho no oceano, repetindo o nome de Marcela” (MPBC, p. 439).

 

As políticas eugênicas do século XIX, em razão principalmente da sífilis, levaram, no entanto, a uma associação entre prostituição e doença ‑ a prostituta era sempre uma mulher cheia de doenças. Émile Zola (s/d) encerra seu romance Naná com uma descrição que nos mos­tra o quanto essa associação era dominante no pensamento da sociedade novecentista: “os vírus colhidos por ela nas sarjetas, nos contatos malsãos que suportara, o fermento com que envenenara um povo, lhe subiam ao rosto e lhe apodreciam a beleza” (p. 347). Machado, homem do seu tempo, socialmente puritano, também não fugiu à regra, e Marcela aparece carcomida pela varíola e pela vida libertina que havia levado. Apesar de ser um crítico da sociedade, ele não encontrou outra saída par. personagem se não a do castigo no corpo, ou seja, o corpo que ha servido voluptuosamente aos homens agora era objeto de repugnância

 

“Ao fundo, por trás do balcão, estava sentada uma mulher, cujo rosto amarelo e bexiguento não se destacava logo, à primeira vista; mas logo que se destacava era um espetáculo curioso. Não podia ter sido feia; ao contrário, via‑se que fora bonita, e não pou­co bonita; mas a doença e uma velhice precoce, destruíram‑lhe a flor das graças. As bexigas tinha sido terríveis; os sinais, grandes e muitos, faziam saliências e encarnas, declives e aclives, e davam uma sensação de lixa grossa. Eram os olhos a melhor parte do vul­to, e aliás tinham uma expressão singular e repugnante, que mu­dou, entretanto, logo que eu comecei a falar. Quanto ao cabelo, estava ruço e quase tão poento como os portais da loja. Num dos dedos da mão esquerda fulgia‑lhe um diamante. Crê‑los‑eis, pósteros? essa mulher era Marcela” (MPBC, p. 458).

 

E, como que para fechar o capítulo referente a uma prostituta em fim de carreira, Machado, para que o leitor não se envolva em um clima piedoso a respeito da personagem, não fique compungido frente à sorte de Marcela, ao tomar conhecimento do mal‑estar de Brás Cubas diante do velha paixão juvenil ‑ “eu me sentia pungido e aborrecido ( … ) e ansiava por me ver fora daquela casa” (MPBC, p. 459), deu um toque final enfatizando não mais o pecado da luxúria, mas o da cobiça.

 

“Disse ela que desejava ter a proteção dos conhecidos de outro tempo; ponderou que mais tarde ou mais cedo era natural que me casasse, e afiançou que me daria finas jóias por preços baratos. Não disse preços baratos, mas usou uma metáfora delica­da e transparente. Entrei a desconfiar que não padecera nenhum desastre (salvo a moléstia), que tinha o dinheiro a bom recado, e que negociava com o único fim de acudir à paixão do lucro, que era o verme roedor daquela existência; foi isso mesmo que me dis­seram depois” (MPBC, p.”459).

 

Marcela “mal chegava a entender a moral do código” (MPBC, p. 433). Código criado pelos homens que permitiam que se estabelecesse, de forma ambígua, a prostituição. Numa sociedade que valorizava o sexo procriativo vinculado à família, necessitava‑se de mulheres que pudessem oferecer prazer sexual aos jovens solteiros e aos casados insatisfeitos.

 

“Porque não tem função procriadora, a prostituição (como as relações sexuais fora do casamento) é socialmente condenada. Ao mesmo tempo, porém, é tolerada e até mesmo estimulada nas sociedades que defendem a virgindade das meninas púberes soltei­ras, de um lado, mas que, de outro lado, precisam resolver as frus­trações sexuais dos jovens solteiros e dos homens que se conside­ram mal casados ou que foram educados para jamais confundirem suas honestas esposas com amantes voluptuosas e desavergonha­das” (Chauí, M, 1984, p. 80).

 

Freud, em 1910, trouxe uma interessante contribuição para que se pudesse entender um pouco mais a respeito das escolhas de objeto que fazem os homens, notadamente no que diz respeito ao que chamou o amor à prostituta. Sabemos que, conscientemente, os adultos pensam em suas mães como pessoas de conduta ilibada, de moral inatacável. Em conseqüência disso, uma das mais desagradáveis ofensas é ser cha­mado por outrem de filho da puta. No homem, o seu mundo interno também por vezes o ataca, ao colocar em sua fantasia algum aspecto luxurioso de sua mãe. Contudo, Freud irá investigar o desenvolvimento desses dois complexos, a relação inconsciente que está presente, de for­ma constante, na fantasia do homem: o da mãe e o da prostituta, que estão em oposição inclusiva. Desde a pré‑puberdade, quando começa a receber informações sexuais, se bem que da forma mais crua e desordenada, um menino se rebela contra a idéia de que seus pais fazem sexo. Este é um tema muitas vezes insuportável, já que o lança de forma muito incômoda em seu próprio desejo incestuoso ‑ e sabemos que nada  é mais terrível que este tipo de desejo. A solução dada por Sófocles a seu personagem é a daquele que se inflige um castigo, se cegar, em virtude da prática incestuosa, algo tão hediondo! Ao ser iniciado nas conversas e piadas de cunho sexual, o menino toma conhecimento de que existem mulheres que vivem do sexo, o que lhe permite direcionar todo o seu mundo sexual fantasioso para este tipo de possibilidade, fazendo com que, em oposição ao discurso adulto corrente, ele as veja como desejadas e perigosas, ou, como disse Freud:

 

“… tão fogo aprende que ele também pode ser iniciado por essas infelizes ( … ) as considera com um misto de desejo e horror. Quando, depois disto, já não pode mais nutrir qualquer dúvida que tomem seus pais uma exceção às normas universais e odiosas da atividade sexual, diz‑se a si próprio, com lógica cínica, que a dife­rença entre sua mãe e urna prostituta não tão grande, visto que, em essência, fazem a mesma coisa” (1910, p. 154).

 

Machado de Assis havia percebido, de forma inconsciente, o que Freud (1912) afirmava a respeito: a proibição da vida erótica das mulhe­res é comparável à necessidade que têm os homens de depreciar seu objeto de escolha sexual . – “…um corpo esbelto, ondulante, um desgarre, alguma cousa que nunca se achara nas mulheres puras” (MPBC, p. 433) -, já que os desejos pela mãe ao esbarrarem na lei da interdição o fazem. conscientemente e inconscientemente, estabelecer uma separação entre a mãe e a prostituta. Lembremo‑nos de que a mãe de Brás Cubas era “uma senhora fraca, de pouco cérebro e muito coração, assaz crédula, sinceramente piedosa” (MPBC, p. 428), nada denotando sensualidade ‑ é para ser amada sem ser desejada.

 

No curso da vida erótica, o ser humano, em virtude do interdito incestuoso, deverá modificar seus desejos sexuais em relação aos pais, transformando‑os em sentimentos afetuosos. Na puberdade poderá sur­gir um deleite por mulheres a quem respeita, no caso dos homens, mas que não o excitam, mostrando‑se sequioso de sexo com as que não ama. Na esfera do amor, verifica‑se uma conjugação das correntes sensuais com as afetuosas, podendo‑se medir a seriedade do amor pelo exame das partes das pulsões sexuais, inibidas em seu objetivo. Nas questões de amor, a idealização do objeto estará sempre presente ‑ livre de toda crítica o objeto é puro, é desejado pelos valores espirituais que possui; a sensualidade fica, em muitos casos, francamente escamoteada. A idealização do objeto aponta para uma conjugação do ego com o objeto.

 

Sabemos que o objeto materno é cindido exatamente porque está impregnado de um insuportável desejo. Pode‑se então dizer que o discurso machadiano, através de Brás Cubas, nada mais é do que uma denegação da sensualidade materna. Dividindo o objeto do desejo, a imago materna fica preservada do inaceitável desejo, e ele pode deslocá-­lo para mulheres, por vezes mais velhas, com isso podendo desejá‑las de forma ardorosa e sem limites.

 

Não podemos ser ingênuos e pensar que a prostituição é apenas uma invenção masculina. Ela é uma oportunidade a mais que o homem encontra para purgar as sua fantasias edípicas. A prostituição está a servi­ço, de forma totalmente inconsciente, do horror ao incesto. Uma situação resolutiva na medida em que produz, como afirma Freud (1910), um “contraste agudo entre a mãe e a prostituta” (p. 153).

 

 

 

 

 

8. O Ego e os mecanismos de defesa

(Do Livro: Freud Básico, pensamentos psicanalíticos para o século XXI,  Michael Kahn,

Editora Civilização Brasileira, 2003, pág. 159 …. )

 

Praticamente desde o começo de nossas vidas nos deparamos com conflitos inevitáveis. Existem impulsos imperiosos demandando satisfação. Postado à frente deles, temos o mundo exterior, que ameaça de punição a tentativa de satisfazer vários desses impulsos. Esse é o primeiro conflito, sendo, com diferentes disfarces, vitalício. Durante a infância, uma outra força se desenvolve, e é preciso lidar com ela: o superego, a consciência, que ameaça punir com a culpa. A psicanálise é o estudo desses conflitos e do modo como se lida com eles.

 

No quadro freudiano da vida mental, … os impulsos se originam no id e o ego é aquela parte da personalidade encarregada de manejar os conflitos entre o id, o mundo exterior e o superego. O ego tem de tentar nos manter longe do perigo, enquanto busca conseguir que ao menos alguns dos impulsos sejam satisfeitos. Deve tentar manter a dor psíquica na intensidade mínima. Acima de tudo, deve impedir que sejamos subjugados pelas três variedades de ansiedade: a realista, a moral e a neurótica. Não é uma missão fácil de cumprir. A própria antecipação da satisfação de alguns desses impulsos evoca o espectro da punição e, desse modo, gera muita ansiedade. Uma decisão consciente de privar-se do impulso, no entanto, pode ser extremamente frustrante.

 

Freud deu o nome de mecanismos de defesa às muitas tentativas do ego de solucionar esses dilemas. Repetidamente, ele disse que os mecanismos de defesa eram a pedra fundamental da teoria psicanalítica. Se os compreendêssemos, compreenderíamos como a mente funciona. Embora ele tenha acrescentado que por meio disso compreenderíamos também a neurose, é importante observar que nem Freud nem nenhum dos seus seguidores acreditavam que o emprego dos mecanismos de defesa era necessariamente patológico. Pelo contrário, todos nós os utilizamos; não poderíamos levar a vida sem eles. Esses mecanismos só se tornam um problema ao serem utilizados pelo ego de modo excessivo ou inflexível.

 

Observa-se corriqueiramente na medicina que o corpo algumas tenta encontrar alívio para uma doença ou ferimento com excessivo entusiasmo e produz uma condição pior ainda. A afirmação de Freud de que os mecanismos de defesa são a chave da neurose contém a mesma implicação. Em uma tentativa de se proteger da ansiedade, as pessoas algumas vezes instauram medidas defensivas excessivas que se tornam componentes pertinazes e gravemente onerosos do seu caráter.

 

Dos vários mecanismos de defesa, o primeiro que Freud focalizou foi o RECALQUE, ……Mais tarde, Freud acrescentou outros mecanismos, mas nunca escreveu um relatório sistemático sobre eles. Essa tarefa coube à sua filha, Anna Freud, que em 1936 publicou O ego e os mecanismos de defesa, até hoje um dos livros clássicos da psicanálise sobe o assunto. Dos escritos do pai, ela selecionou uma lista de defesas e, em seguida, acrescentou outras; cogitaremos as mais importantes aqui.

 

Gostaria de propor uma definição de mecanismo de defesa que se afasta das definições clássicas…. Ela tem, espero, a vantagem de ser simples: Um mecanismo de defesa é uma manipulação da percepção que tem como intuito proteger o indivíduo da ansiedade. A percepção pode ser de episódios internos, tais como os sentimentos e impulsos, ou de episódios exteriores, tais como os sentimentos dos outros ou as realidades do mundo.

 

  1. Recalque – ….  Recalcar significa excluir um impulso ou um sentimento da consciência. Portanto, é a manipulação da percepção de um episódio interior.

 

O desejo erótico por uma pessoa proibida é perigoso. Se a pessoa que eu desejo é um progenitor ou filho ou irmão, ou talvez (se me defino como heterossexual) uma pessoa do mesmo sexo, ter a consciência desse desejo me colocaria em risco de sentir dolorosos sentimentos de culpa. Se eu revelasse o desejo incorreria em novo risco, o de ser humilhado ou punido. Se tenho consciência do impulso e consigo mantê-lo inteiramente oculto, tenho de lidar não apenas com a culpa, mas também com a frustração de uma forte necessidade que nunca pode ser satisfeita. Parece claro que para mim é uma vantagem não ter consciência do meu desejo.

 

O mesmo é verdadeiro para os impulsos agressivos. Para muitos de nós, é difícil ter consciência dos sentimentos de raiva que guardamos em relação a pessoas próximas. Par alguns de nós, é difícil aceitar sentimentos de raiva em relação a qualquer pessoa. Assim como em relação aos sentimentos eróticos, parece melhor não estar ciente deles.

 

Essa opção está disponível; é a opção do recalque. Encontramos de novo nosso velho amigo, o vigia que toma conta da sala de visitas da consciência. Ele examina o desejo que busca ser admitido na consciência e decide expulsá-lo, mantê-lo no hall de entrada. Se de algum modo esse desejo consegue entrar na sala de visitas, ele o acompanha até a saída novamente. Na linguagem da teoria dos mecanismos de defesa, o ego reconheceu essa dupla demanda do id:

 

–         que o desejo seja reconhecido pela consciência e

–         que seja satisfeito por meio de ação.

 

O ego sabe bem que, se qualquer dessas demandas for concedida, o superego atacará coma culpa. Ele também sabe que provavelmente haverá respostas negativas do mundo exterior, se o desejo for revelado. Portanto, recalca o desejo, ou seja, mantém-no longe da consciência, mantém-no aprisionado no inconsciente, e, ao fazer isso, protege-se da ansiedade, da antecipação do desamparo diante do perigo…….. Ao menos no caso da agressão, isso é uma vitória pirrônica. O superego não será mitigado porque os sentimentos agressivos se tornaram inconscientes. No exemplo anterior, a percepção de um episódio anterior (desejo) foi bloqueada. Ainda desejo a pessoa ou ainda quero magoá-la, mas esse desejo é agora inconsciente, invisível, não mais percebido por mim….

 

… O recalque é indispensável. Os desejos incestuosos são um bom exemplo disso. Como poucos de nós estamos planejando violar os tabus e arcar com as conseqüências, a consciência desses impulsos seria dolorosa, frustrante e provocaria ansiedade. O mesmo pode ser dito a respeito de boa parte dos desejos eróticos e dos impulsos agressivos que sentimos. Se não os recalcássemos de todo, sentir-nos-íamos oprimidos pela profusão de fantasias e impulsos que incidiriam sobre a consciência.

 

… A maioria de nós recalca mais do que seria desejável. Se não posso ter plena consciência dos meus sentimentos amorosos – tanto dos afetuosos quanto dos passionais -, da minha jocosidade, da minha assertividade e da minha dor e tristeza, minha vida fica truncada e distorcida. Embora o recalque seja indispensável quando aplicado aos impulsos apropriados em doses apropriadas, quando excessivo, é a causa de graves problemas na vida.

 

Há uma importante lição sobre a criação dos filhos que pode ser tirada disso. A muitos de nós foi ensinado que havia não apenas boas e más ações, mas bons e maus sentimentos também. São raros os pais que encorajam os filhos a fazerem uma distinção entre sentimentos e comportamentos, apoiando o direito deles de sentir tudo que sentem, ao mesmo tempo em que lhes ensinam que certos comportamentos são proibidos. O encorajamento dessa distinção, no entanto, seria um avanço, no sentido de proteger a criança de um recalque excessivo em sua vida futura.

 

Sigmund e Anna Freud entendiam que o recalque era o mecanismo de defesa básico e o mais propenso a causar sérias dificuldades neuróticas. Veremos que alguns dos outros podem ser muito destrutivos, se utilizados em excesso, mas em sua maior parte fazem parte da vida mental normal. À medida que prosseguimos, consideraremos os mecanismos rotulados de negação, projeção, formação reativa, identificação com o agressor, deslocamento, e voltando‑se contra o self.

 

2.  Negação – O recalque é a manipulação da percepção de um episódio interno. O mecanismo da negação é a manipulação mental de um episódio externo.

 

A negação significa que eu me protejo da ansiedade, deixando de perceber ou percebendo equivocadamente algo no mundo exterior aos meus próprios pensamentos ou sentimentos. Assim que saímos da infância, a negação apresenta um problema para o ego. Uma das missões do ego é o teste de realidade. Sobrevivemos graças à capacidade do ego de avaliar a realidade, e é através dessa capacidade que maximizamos as nossas gratificações.

 

É o ego que nos lembra que, por mais que tenhamos prazer em dirigir rápido, a realidade é que podemos ser presos ou mortos por causa de uma velocidade muito alta. Para o ego, o uso de um mecanismo de defesa que distorce a realidade, como, por exemplo, achar que não existe perigo na alta velocidade, lhe apresenta um problema. Entretanto, mesmo o ego mais maduro e flexível dá um jeito de, às vezes, fazer exatamente isso.

 

Um exemplo clássico de negação em nosso mundo contem­porâneo é a persistente falta de disposição de amplas parcelas da população de reconhecer conhecidos riscos à saúde, mais fla­grantemente, o hábito de fumar. Para fumar sem um forte sen­timento de ansiedade, é necessário encobrir a consciência do perigo.

 

No auge do impasse nuclear entre os Estados Unidos e a União Soviética, todos os habitantes do planeta estavam sob per­manente ameaça de uma catástrofe de proporções inimagináveis. Tenho a impressão de que, para todos, algum grau de negação era necessário para viver sem uma ansiedade paralisante. A maio­ria das pessoas parecia ter conseguido uma boa dose de nega­ção. Mesmo os ativistas antinucleares precisavam negar de alguma forma, para continuar em atividade.

 

Jogadores contumazes empregam a negação, a um custo considerável. As chances de não ganhar uma das loterias que pagam prêmios elevados são estarrecedoras. Tenho um amigo que vive falando de ganhar a loteria; quando alguém diz que não sabia que ele jogava, ele diz: “Eu não jogo, mas tenho tanta chance de ganhar quanto as pessoas que jogam.” Isso está muito próximo da verdade, porém não há falta de fregueses para os bilhetes lotéricos. Jogadores envolvidos com máquinas caça‑ní­queis não poderiam continuar jogando se não negassem a alta

probabilidade desfavorável a eles. Mesmo os jogadores de da­dos, que enfrentam as probabilidades menos ruins de um cassi­no, precisam negar a pequena chance que têm de sair vitoriosos ao final do jogo.

 

A maioria de nós utiliza a defesa da negação ao menos oca­sionalmente. Certa vez, no meu trabalho, eu desejava muito uma determinada atribuição, e, durante várias semanas, fui o princi­pal candidato a ela. Um amigo meu, preocupado com a possibi­lidade de uma reação negativa de minha parte quando a realidade fosse revelada, chamou‑me de lado e disse, gentilmente, que todos, menos eu, estavam percebendo que eu não tinha a me­nor chance ‑ o meu supervisor vinha indicando isso. Eu não tinha me permitido enxergar esses indícios,

 

Algumas vezes, empregamos a negação em nossos relacio­namentos, quando, por exemplo, estamos motivados para não enxergar que o nosso amor não é correspondido ou, caso contrário, quando o relacionamento é tão agradável que nos re­cusamos; a enxergar que estamos nos envolvendo mais profun­damente do que planejávamos.

 

A negação pode ser muito perigosa, como no caso do fumo. No entanto, às vezes pode ser adaptativa. Uma amiga minha precisava fazer uma biópsia que, ela disse, poderia produzir um diagnóstico inofensivo ou catastrófico. A biópsia estava marcada para dali a sete dias. Ela continuou fazendo o que tinha de fazer na semana, parecendo bastante animada. Comentei com um culto psicólogo amigo nosso que estava preocupado com a negação dela, temendo que não estivesse preparada para a catástrofe, caso esta de fato ocorresse. Ele me disse para deixá‑la em paz e me dar por contente por. ela ter um ego suficientemente forte para negar o perigo, quando não havia nada que pudesse fazer a respeito. Nunca me esqueci desse conselho. Incidentalmente, a história teve um final feliz.

 

3. Projeção – O mecanismo de defesa com o qual manipulamos uma percep­ção interna e uma percepção externa é chamado de projeção. A projeção refere‑se a uma forma de proteção contra a ansiedade por meio do recalque de um sentimento e da percepção equivo­cada desse sentimento em uma outra pessoa. Eu recalco a mi­nha raiva e acho que você está com raiva de mim. Recalco o meu desejo sexual e acho que você está me desejando.

 

Essa forma de projeção, incidentalmente, está sempre pre­sente na homofobia. Eu recalco meus anseios homossexuais e acredito que outro homem, talvez um que identifico como gay, está tentando me seduzir. É possível que muitas das acusações políticas contra os homossexuais tenham suas raízes na proje­ção. Por exemplo, diz‑se freqüentemente que não se deveria per­mitir que homens homossexuais dessem aulas nos colégios ou fossem chefes de escoteiros, porque poderiam incentivar um estilo de vida gay ou mesmo seduzir os meninos. Não há evi­dências para se afirmar isso, portanto a teoria da projeção leva a deduzir que pode ser o acusador quem tema correr o risco de ser seduzido ou de seduzir. O leitor não terá dificuldade para entender por que tantos soldados heterossexuais se opõem vee­mentemente a que haja homossexuais em suas unidades. Freud acreditava que a homofobia podia explicar muitos casos de pa­ranóia.

 

Um dos meus clientes, Jay, estava fazendo um doutorado e havia tempo tentava terminar sua dissertação. Os meses se passavam, e ele ia ficando cada vez mais enfurecido com os professores da banca, alegando que eles sempre conseguiam inventar um novo obstáculo para colocar no seu caminho. Por fim, concluiu que eles não queriam que ele obtivesse o titulo e estavam conspi­rando para derrotá‑lo, Ao longo de todo esse período, fui fi­cando cada vez mais convencido de que Jay estava sabotando a dissertação e inconscientemente determinado a não terminá‑la. Seu pai tinha sido um operário que fizera verdadeiros sacrifí­cios para que o filho pudesse estudar e tinha morrido assim que ele começara os estudos na faculdade. Jay falava com freqüên­cia do amor que sentia pelo pai, de sua gratidão por ter sido encorajado a estudar e de sua tristeza pelo fato de o pai não estar vivo para vê‑lo concluir os estudos. Aos poucos, foi fican­do claro que também se sentia muito culpado por suplantar o pai. A culpa decorria de diversos fatores, já que a morte do pai deixara a mãe só para ele. Todo esse complexo de emoções era tão assustador para Jay, que a solução que encontrou foi proje­tar nos professores seu senso de desvalor e o desejo de fracassar.

 

Todos nós empregamos versões moderadas da projeção du­rante uma boa parte do tempo, e nunca nos damos conta disso, a não ser quando ela afeta um relacionamento o suficiente para chamar a atenção para a sua existência. Não é incomum a pes­soa projetar no parceiro a fantasia da infidelidade, e em seguida acusá‑lo de infiel.

 

Quando eu estava na faculdade, um amigo meu que era muito íntimo do seu companheiro de quarto convenceu‑se de manei­ra inabalável de que sua noiva planejava ter um caso com ele, durante o tempo em que estaria fora da cidade. Em meio a uma intensa confrontação, sua noiva, que era muito ponderada e requintada, lhe disse: “Alguém está ‘com desejo de dormir com o Ted, muito bem, e não sou eu.” Meu amigo ficou completa­mente abalado. Mais tarde, ele me disse que até aquele momento acreditara firmemente que sua heterossexualidade era absolu­ta. Durante um curso de psicologia, ao ouvir alguém falar da teoria de que todas as pessoas eram inconscientemente bis­sexuais, ele pensara: “Menos eu.”

 

Essa situação acabou se provando um problema brando (e muito instrutivo). A projeção levada aos extremos pode se trans­formar num problema muito grave, que se deteriora até se tor­nar uma paranóia plenamente desenvolvida.

 

4. Formação reativa – A formação reativa é um mecanismo de defesa com o qual nos protegemos da ansiedade, manipulando uma percepção inter­na. Significa perceber equivocadamente um sentimento como o seu oposto. Freqüentemente, significa transformar amor em agressão ou agressão em amor.

 

Um dos episódios mais fascinantes e emocionantes da vida de Beethoven envolveu o seu sobrinho Karl e a sua cunhada Johana, mãe de Karl. Beethoven desenvolveu um ódio irracio­nal por Johana e uma firme convicção de que deveria resgatar Karl de sua influência. Maynard Solomon, o biógrafo mais so­fisticado do compositor, psicologicamente falando, levanta a hipótese convincente de que o ódio obsessivo de Beethoven por Johana representava uma atração passional inconsciente por ela.

 

Uma forma extremamente importante de formação reativa é confundir um desejo com um medo. É um modo comum de se proteger da culpa decorrente de um desejo.

Minha cliente Marian estava preocupada com a segurança físi­ca do filho de dez anos. Mantinha‑o sob rédea curta, restrin­gindo sua liberdade consideravelmente, mais do que o faziam as mães dos seus amigos. Vivia ansiosa, achando que algo terrível lhe aconteceria. Antes do nascimento desse seu único filho, conforme seu relato, era uma pessoa animada e despreocupa­da. Uma prolongada depressão pós‑parto seguiu‑se ao nascimento do filho. Seria a primeira de uma série de depressões dolorosamente severas. Ela mencionava freqüentemente o quanto amava esse menino e o quanto se preocupava com a sua segurança. Passa­ram‑se vários meses antes de ela ter condições de aceder em explorar a possibilidade de que também sentisse raiva. E só muitos meses depois disso foi que ela me permitiu dizer‑lhe: “Ambos sabemos que ele não desejava lhe fazer nenhum mal. Apesar disso, me parece inevitável que de vez em quando você possa desejar que ele seja de algum modo punido, por tê‑la machucado tanto.”……………….

 

Os terapeutas psicodinâmicos aprenderam que, ao se con­frontar com um medo do cliente que consideram enigmático, devem refletir, ao menos para si, sobre que desejo aquele medo pode estar mascarando.

 

A forma oposta da formação reativa é a contrafobia, em que o indivíduo se protege de ter de confrontar um medo, perce­bendo‑o equivocadamente como um desejo.

 

Sou fascinado por cutelarias. Existe uma cadeia delas em Nova York, com amplas vitrines exibindo uma infindável cole­ção de facas brilhantes, canivetes e tesouras. Posso ficar horas diante de uma dessas vitrines, embora certamente não necessite de mais uma faca militar suíça. O leitor que me acompanhou até aqui reconhecerá uma resposta contrafóbica a um caso gra­ve de ansiedade de castração.

 

5. Identificação com o agressor – Um dos conteúdos mais importantes do livro de Anna Freud é o capítulo sobre identificação com o agressor. Embora Sigmund Freud tenha descrito o fenômeno em diversos contextos, nunca o isolou e nomeou.

 

A confrontação com alguém mais poderoso que você, que tem intenções agressivas a seu respeito, reais ou supostas, pro­voca muita ansiedade. Possuir intenções agressivas em relação a essa pessoa poderosa também pode provocar ansiedade, devido ao medo da retaliação. A identificação com o agressor é uma defesa elaborada para proteger o sujeito contra a ansiedade de­corrente do conflito com uma pessoa poderosa ou de estar à mercê dessa pessoa.

 

…A identificação com o agressor desempenha um papel importante na resolução do complexo de Édipo, na formação da identidade do adolescente e na forma­ção do superego.

 

A psicanalista Nancy MacWilliams assinalou que a análise que Anna Freud fez desse fenômeno teria sido mais clara se ela o tivesse chamado de “introjeção do agressor”, porque era cla­ramente isso o que ela queria dizer. A identificação em geral implica uma defesa menos automática e inconsciente do que a introjeção. As crianças se identificam com os pais, mentores e colegas de maneiras muito óbvias: forma de vestir, atitudes e maneirismos. Também introjetam aspectos deles, como na reso­lução do complexo de Édipo. A introjeção implica a suposição inconsciente de que existe em mim um determinado atributo ou conjunto de atributos da outra pessoa. No entanto, manteremos a terminologia empregada por Anna Freud, já que esta tem apa­rentemente um lugar permanente na linguagem.

 

A identificação com o agressor me permite aumentar o po­der que percebo em mim por meio da introjeção de algum as­pecto da pessoa perigosa. Posso introjetar uma ou mais de suas características pessoais; posso introjetar a agressividade; posso introjetar ambas. Na resolução edipiana clássica, eu me torno igual ao meu progenitor do mesmo sexo, ao me definir corno heterossexual e partir em busca do meu próprio parceiro. É provável que eu também me torne igual àquele progenitor, de urna série de outras maneiras. Uma parte importante da minha identidade é construída por meio dessa introjeção.

 

Ao utilizar essa defesa, posso também projetar. Projeto as minhas intenções agressivas na outra pessoa para me proteger contra a ansiedade superegóica, ou seja, para me proteger da culpa. Desse modo, não percebo minha agressividade em rela­ção ao meu pai; percebo apenas que tenho medo dele. Como introjetei o seu poder, o medo é administrável. As crianças que brincam de super‑heróis onipotentes empregam uma versão cotidiana adaptada dessa defesa. Elas estão, é claro, identifican­do‑se com uma pessoa poderosa que as amedronta, freqüen­temente com um progenitor.

 

Em seu livro sobre os campos de concentração nazistas, o psicanalista Bruno Bettlelheim, ele mesmo um sobrevivente do holocausto, fornece um exemplo comovedor dessa defesa. Os prisioneiros judeus se identificavam com os guardas nazistas. Eles imitavam a maneira de os guardas andarem e se apossavam de uma parte descartada do uniforme deles, como se fosse um ob­jeto de valor.

 

6. Deslocamento e voltando-se contra o self – Anna Freud conta de um paciente do sexo feminino cujas tenta­tivas de lidar com a ansiedade ilustram dois mecanismos de de­fesa que ainda não consideramos:

 

Quando criança, essa paciente sentia inveja e ciúme intenso do tratamento especial que acreditava ser concedido por sua mãe aos irmãos dela. Isso se transformou eventualmente em uma impetuosa hostilidade contra a mãe, e ela se tornou uma crian­ça abertamente raivosa e desobediente. Mas seu amor pela mãe era igualmente forte, o que fez com que adquirisse um severo conflito. Temia que a raiva lhe custasse o amor da mãe, de que ela tanto necessitava. Ao entrar no período de latência, sua ansiedade e conflito se tornaram cada vez mais intensos. A primeira tentativa de dominar essa ansiedade foi através do emprego do mecanismo de deslocamento. Para solucionar o problema da ambivalência, ela deslocou o ódio para uma série de mulheres. Sempre havia em sua vida uma segunda mulher im­portante que ela odiava violentamente. Isso produzia uma cul­pa menor do que o ódio que sentia pela mãe, mas não eliminava a culpa. Portanto, o deslocamento não era uma solução ade­quada.

 

O seu ego agora recorreu a um segundo mecanismo [que Sigmund Freud chamou de voltando‑se contra o self]: interio­rizou o ódio que até então estava relacionado exclusivamente a outras pessoas. Ela se torturava com auto‑acusações e sentimen­tos de inferioridade. Ao longo da adolescência e já adulta, fez tudo que podia para se colocar em desvantagem e prejudicar seus interesses, sempre abdicando dos seus desejos em forma das demandas dos outros em relação a ela.

 

Como os outros mecanismos, o deslocamento e o voltar‑se contra o self são comuns na vida cotidiana, mas relativamente inofensivos, contanto que sejam brandos e de curta duração. O deslocamento é uma defesa tão comum, que adquiriu um apeli­do geral: “Chutar o cachorro.” Se o meu patrão me tratou mal, é claro que não posso manifestara raiva que sinto dele. O que é mais sutil: posso não me permitir senti‑la plenamente, porque isso tornaria a minha vida profissional desagradável e poderia estimular uma culpa inconsciente relacionada à raiva que sinto de um progenitor. Nessas ocasiões, meus entes queridos mais próximos me fornecem um amplo ancoradouro; eles são alvos mais seguros.

 

Minha cliente Victoria, quando criança, aprendeu que as con­seqüências de expressar a raiva eram terríveis, freqüentemente dias de tratamento silencioso. Ela cresceu praticamente sem poder até mesmo sentir raiva, quanto mais manifestá‑la. Sua resposta a qualquer dificuldade interpessoal era se sentir bas­tante deprimida. Demorou muito até ela ser capaz de perceber a depressão como raiva voltada contra si mesma, o único lugar seguro para onde podia dirigi‑la.

 

No começo deste capítulo, propus uma definição de meca­nismo de defesa: uma manipulação da percepção, com o objeti­vo de proteger a pessoa da ansiedade. A percepção pode ser de episódios interiores, tais como os sentimentos e impulsos, ou de episódios exteriores, tais como os sentimentos dos outros ou as realidades do mundo. Afirmei que ela diferia das definições clás­sicas. Essa diferença dá margem a uma questão fascinante.

 

Anna Freud escreveu que “os processos defensivos, tais como o deslocamento… ou o voltar‑se contra o self, afetam o próprio processo pulsional; o recalque e a projeção apenas o impedem de ser percebido. O que ela queria dizer com isso era que a criança, no exemplo anterior retirado do seu livro, deixou real­mente de odiar a mãe e começou a odiar primeiro as outras mulheres, e depois a si mesma. A mudança não foi meramente perceptiva. A definição que proponho infere que o ódio da mãe ainda está presente inconscientemente, sendo simplesmente recalcado, ou seja, não percebido.

 

Não é incomum trabalhar com um cliente que deslocou seus anseios eróticos edipianos para outra pessoa, e então falseia a evidência inconfundível de que o anseio original continua a existir, inconscientemente.

 

Quando Freud elaborou a sua segunda teoria da ansiedade, em 1926, ela exerceu um impacto na sua teoria das defesas. O leitor lembrará que a teoria de 1926 descrevia a ansiedade como um sinal, um aviso de desamparo iminente diante do perigo. As defesas têm a função de proteger o indivíduo dessa sensação de desamparo. A ansiedade adulta, como acreditava Freud, era exacerbada por servir como um lembrete das situações traumá­ticas mais primitivas, quando intensidades traumáticas de esti­mulação inundavam o recém‑nascido, o bebê ou a criança. Portanto, uma função importante do mecanismo de defesa era repelir essa estimulação traumática.

 

Um dos três tipos de ansiedade com os quais as defesas têm de contender é a ansiedade moral, o medo do superego. Isso traz à tona uma das principais questões da psicologia psicodinâmica: o problema da culpa.  

 

Outros mecanismos de defesa

(Fonte internet: http://psicanalisefreudiana.vilabol.uol.com.br/mecanismosdedefesa.html)

 

Atos falhos ou falhados – São aqueles que praticamos aparentemente sem querer e de modo inexplicável. É comum cometermos enganos, trocarmos palavras, esquecermos objetos, etc. Os atos falhos são causados pelos impulsos reprimidos que procuram se descarregar de qualquer modo, mesmo interferindo em nossas ações não submetidas à repressão.

 

Um exemplo de ato falho seria o seguinte caso: Um presidente da câmara austríaca, ao abrir a sessão, numa noite em que todos temiam um escândalo, disse: “Senhores deputados, está encerrada a sessão” em vez de “está aberta a sessão”.

É freqüente perdermos objetos que nos foram dados por pessoas de quem não gostamos, enganar-nos com o itinerário ou perdermos a condução quando vamos aborrecidos a algum lugar.

 

Racionalização – É o mecanismo pelo qual a nossa inteligência apresenta razões socialmente aceitáveis para nossas ações que, na realidade, foram motivadas pelos impulsos do Id. Racionalizar é inventar pretextos, razões para desculpar, diante da sociedade e de nós mesmos, os nossos atos cujos motivos reais não percebemos.

 

Por exemplo: um rapaz compra um carro, realizando uma despesa exagerada em relação a sua situação financeira e a suas necessidades profissionais, porém tranqüiliza sua consciência e justifica-se diante dos outros afirmando que o carro vai ser muito útil para seu trabalho e vai facilitar as atividades de suas irmãs e de seus pais já idosos. A finalidade da racionalização é manter o auto-respeito e reduzir as tensões resultantes da frustração e dos sentimentos de culpa.

 

Conversão – é a transformação de conflitos emocionais em sintomas físicos. Por exemplo, os “tiques” em crianças, que acontecem sem se perceber,  podem ser sintomas de problemas emocionais

 

Regressão – é o processo psíquico em que o Ego recua, fugindo de situações conflitivas atuais, para um estágio anterior. É o caso de alguém que depois de repetidas frustrações na área sexual, regrida, para obter satisfações, à fase oral, passando a comer em excesso.

 

Isolamento – é um processo psíquico típico da neurose obsessiva, que consiste em isolar um comportamento ou um pensamento de tal maneira que as suas ligações com os outros pensamentos, ou com o autoconhecimento, ficam absolutamente interrompidas, já que foram (os pensamentos, os comportamentos), completamente excluídos do consciente. Certos doentes defendem-se contra uma idéia, uma impressão, uma ação, isolando-as do contexto. Ele se manifesta inclusive no tratamento psicanalítico. Um meio de evidenciá-lo é através da associação livre.

 

Substituição – Processo pelo qual um objeto valorizado emocionalmente, mas que não pode ser possuído, é inconscientemente substituído por outro, que geralmente se assemelha ao proibido..

 

5. EXEMPLOS DE CASOS PSICANALÍTICOS

 

(Do Livro “Freud Básico” , Michael Kahn, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2003)

 

1. Janny, uma jovem cliente solitária, sabia que ansiava por contato com os outros, porém se afastava de amigos ou de amantes potenciais sempre que uma aproximação ocorria. Passaram-se meses até ela descobrir que tinha medo de que o contato pudesse levar a uma intimidade, e que a intimidade contivesse algum perigo inominável. O perigo permaneceu inominável, até ela associar o medo de contato a um acontecimento da infância: quando tinha cinco anos, o seu querido pai, a única pessoa da família em quem ela realmente confiava, abandonara a família, sem dar qualquer aviso, e sumira de vez. Fora um trauma despedaçador. Lentamente, Janny compreendeu que o medo inconsciente do abandono incidia sempre que ela antecipava uma intimidade.

 

2. Uma das minhas clientes começou a terapia me assegurando que seu relacionamento com a mãe era satisfatório – que não havia nele nada particularmente significativo. Logo o seu relato revelou que ela repetidamente tem a seguinte experiência: por alguma boa razão, ela acha que é necessário faltar a um encontro com uma amiga íntima. Em seguida a isso, ela sofre um grave ataque de ansiedade. Quando lhe indaguei sobre essa questão, ela explicou a ansiedade, dizendo recear que por ter faltado ao compromisso, a amiga tivesse ficado furiosa. Ela viveu essa mesma seqüência de eventos inúmeras vezes; quando encontra a amiga novamente, esta tem sempre uma postura inteiramente tranqüilizadora. Essa tranqüilidade, no entanto, não impede o próximo ataque de ansiedade. Depois de meses de trabalho, ela começou a recobrar memórias de um olhar distante percebido no rosto da mãe que a convenceu de que, de algum modo, ela a havia afastado de si. Seu medo inconsciente de perder o amor da mãe se traduz na marcante insegurança com as amigas.

 

3. Geoffrey consultou um terapeuta por causa de uma série de problemas, inclusive uma aflitiva inibição sexual em relação à sua mulher. Os dois tinham cerca de 35 anos e, antes de se casarem, haviam desfrutado um relacionamento sexual satisfatório. Quando Geoffrey começou a terapia, eles estavam casados havia mais de um ano, e suas relações sexuais vinham se deteriorando cada vez mais. Numa sessão anterior, ele se espantara ao revelar que tinha sido muito difícil beijar a esposa no casamento deles, e que tinha de fato encontrado uma maneira de não o fazer. Somente alguns meses mais tarde, foi que subitamente se lembrou de que, se tivesse beijado a esposa no seu casamento, teria sido a primeira vez que a teria beijado diante da mãe. Os pais de Geoffrey tinham se divorciado quando ele tinha dez anos. Sua mãe nunca mais se casara de novo, ou mesmo namorava. “Você é meu pequeno homem agora”, dissera ao filho. De fato, ela o tratava dessa maneira. Alguns anos depois, ele começara a se masturbar regularmente. Masturbava-se na cama e ejaculava no lençol, e não fazia nada para esconder isso. Todas as manhãs, sua mãe retirava o lençol da cama, lavava-o e recolocava-o, sem fazer comentários. Geoffrey não tinha dúvida de que ela sabia da ejaculação. “Estávamos na verdade fazendo amor, não estávamos?”, perguntou ele ao terapeuta.

 

9. TEXTOS DA PSICANALISTA MARIA RITA KEHL

 

9.1 A PSICANÁLISE E A DIMENSÃO DO CONFLITO

 

(Do livro: “Sobre Ética e Psicanálise”, Cia de Letras, 2002, São Paulo, págs. 78 A 84)

 

A psicanálise pensa o homem como sujeito dividido entre um lugar onde o eu se reconhece e tenta responder por si e um Outro lugar, de onde o sujeito é determinado sem que o eu tenha qualquer poder sobre isso.

 

Por que pensar o homem como sujeito do inconsciente, da falta e do conflito e não, como aprece mais adequado ao gosto pós-moderno, como um ser pleno, idêntico a si mesmo e reconhecido pelo meio a que pertence pelas manifestações soberanas de sua vontade? De acordo com os modelos das neurociências e de certas correntes da psiquiatria, não é necessário pensar o homem como marcado pelo conflito, e sim como uma máquina perfeita que pode ser atormentada por alguns distúrbios desvios de funcionamento ocasionais. De um lado, o excesso de pressão exercido pelas exigências sociais e pelo “ritmo de vida”, moderna pode causar estresse, desânimo, descontrole. De outro, alguns déficits químicos podem submeter o corpo a estados depressivos curáveis pela psicofarmacologia avançada.

 

Se esta é a concepção de ser humano mais condizente com as eficácias terapêuticas atuais, por que insistir no sujeito faltante e dividido da psicanálise? Hoje, mais do que nunca, essa questão deve ser respondida nestes termos éticos do que em termos de eficácia terapêutica. Por enquanto, devo insistir no parâmetro ético: quais as conseqüências – para a construção do laço social nas sociedades demo e para a diversidade das escolhas de destino possibilitadas desde o advento da modernidade – de pensar o sujeito a partir da falta e do conflito? Por que não ceder ao modelo que propõe o homem como positividade plena, sujeita apenas a desvio e déficits ocasionais? Como escreve Roudinesco, o modelo do distúrbio supõe um indivíduo autônomo, soberano e bem-funcionante, afetado por circunstâncias externas à subjetividade – já que, para o indivíduo autônomo, tanto o próprio corpo como o Outro parecem estar fora do lugar onde o eu impera. As circunstâncias “externas” podem produzir falhas no funcionamento do indivíduo, mas não afetam sua integridade.

 

Esse indivíduo é curado por algumas intervenções tão alheias a seu psiquismo quanto o mal que o perturbou. Soberano, autônomo, ele aprende a temer e a defender-se de tudo o que possa novamente perturbá-lo. À maneira do eu-prazer infantil descoberto por Freud, ele é compelido a manter fora de si, afastado (da consciência, dos afetos, do corpo), tudo o que possa produzir mal-estar; e a trazer para junto de si, com objeto seu, tudo o que possa satisfazê-lo. A violência advinda desse modo de estar no mundo me parece evidente: “Nada é mais próximo da patologia do que o culto da normalidade levada ao extremo”, escreve Roudinesco. O modelo do indivíduo íntegro e normal, afetado apenas por fatores extra-subjetivos, produz sujeitos incapazes de ultrapassar a intolerância infantil própria do eu-prazer: sujeitos que reagem ao mal-estar com manifestações de um ódio contra o outro (feito responsável pelo mal e pela angústia que afetam sua precária tranqüilidade) que tem sua origem em um ódio contra tudo o que provoque dissonância em si mesmo. Esse modo de funcionamento pressupõe um psiquismo que se recusa a incluir como própria qualquer representação do conflito e do desajuste. Tornar o desagradável, o angustiante, irrepresentável, equivale a recusar-se ao próprio pensamento, o qual precisa levar em consideração também as marcas mnêmicas deixadas pelas experiências de desprazer. Uma sociedade em que os homens concebem sua vida psíquica segundo o modelo do distúrbio e da cura neuroquímica (ainda que não se possa negar a importância da psciofarmacologia no auxílio do tratamento das formas extremas de sofrimento psíquico) é uma sociedade em que as condições do laço social não convocam os sujeitos a fazer do pensamento um auxílio para a mediação de suas relações e na negociação de suas diferenças. Ao emprobrecimento do pensamento correspondem, de um lado, a violência; de outro lado, a depressão. A outra conseqüência desse modelo é a depressão advinda justamente do emprobrecimento subjetivo que a recusa do conflito produz. É como se fôssemos condenados, sem saber disso (ou seja, a partir apenas dos efeitos inconscientes), a sofrer todos os avatares, todo o peso da nossa condição moderna, sem desfrutar daquilo que ela nos concedeu. “O depressivo sofre de uma liberdade conquistada, porque não sabe desfrutá-la”.

 

A depressão, sintoma do mal-estar neste começo de milênio como a histeria no final da era vitoriana, é ao mesmo tempo condição e conseqüência da recusa do sujeito em assumir a dimensão de conflito que lhe é própria. De um lado é a condição, porque, sem certo rebaixamento libidinal próprio dos estados depressivos, o conflito acaba por se impor. De outro é conseqüência, na medida em que a depressão, o empobrecimento da vida subjetiva, são o preço pago por aqueles que orientam as suas escolhas em função do medo de sofrer. O sintoma neurótico provém justamente das resistências de um eu que não dispõe de recursos significantes para enfrentar seu sofrimento. Por conta da resistência, do desconhecimento que esta produz, o sofrimento recusado lança sobre o eu uma sombra muito maior do que sua dimensão verdadeira.

O medo de sofrer confunde-se com o medo do desconhecido, o neurótico resiste ao novo, resiste a romper com a repetição sintomática. É verdade que o sintoma é também solução de compromisso que permite alguma forma indireta de gozo, e tudo o que é do gozo pede repetição. Mas o que o neurótico mais teme é ser levado a se deparar com aquilo que o eu não quer saber: a dimensão inconsciente que o sujeito recusa o assombra na forma de sonhos, lapsos e fantasia. A angústia de castração, no caso do neurótico, ergue-se não contra uma ameaça cuja execução pode ser evitada sob certas condições, mas contra algo que já lhe ocorreu, mas que ele não conseguiu simbolizar. A esperança de seguir a vida toda ignorando um fato consumado é o alimento da angústia de castração. “O único consolo é que não há esperança”, escreveu santa Teresa de Ávila, essa grande mística que soube muito bem o que era gozar fora do sintoma.

 

Nadezhda Mandelstam, que foi esposa do poeta russo Osip Mandelstam, refere-se ao período do terror stalinista nos seguintes termos:

Tendo ingressado no domínio do não-ser, perdi a noção da morte. Em face da danação, até o medo desaparece. O medo é um relance de esperança; vontade de viver, auto-afirmação. É um sentimento profundamente europeu, que se nutre da auto-estima, da noção que cada um tem de seus direitos, suas necessidades e desejos. Uma pessoa se agarra ao que é seu, e tem medo de o perder. O medo e a esperança confinam entre si. Perdendo a esperança, perdemos também o medo – não há mais nada a temer.

 

É claro que o que o neurótico evita enfrentar nem sempre é um sofrimento trágico ou insuportável, embora assim lhe pareça quando a ele se revela em certo ponto do percurso analítico. Pode ser a dor que se origina da renúncia à satisfação pulsional, quando não se encontra um destino para o resto de gozo que invade o psiquismo. Pode ser a culpa advinda da ambivalência inevitável de nossa relação com o outro, sobretudo com o outro mais amado. Pode ser o medo do abandono, da perda, do desamparo – modalidades da angústia de castração. Pode ser a dor do narcisismo ferido nas condições em que se revela nossa completa insignificância diante do Outro.

O fato é que o homem moderno, voltado para os ideais pós-revolucionários de felicidade – ou, se quisermos, para os ideais burgueses de comodidade e bem-estar -, é alguém que desaprendeu a sofrer. Não sofre com a bravura de um estóico, com o espírito de sacrifício de um súdito leal, nem com a resignação esperançosa de um cristão. Esses “modos de sofrer”, modos de subjetivação que forneciam um sentido ao sofrimento nas sociedades pré-modernas (à maneira do xamã estudado por Lévi-Strauss, cuja narrativa não tinha o poder de suprimir a dor da doente  mas apenas de torná-la suportável), desapareceram de nossas formações sociais. O sujeito moderno sofre de sua culpa neurótica, acrescida da culpa por estar sofrendo, Quantas vezes, em seu consultório, os analistas não recebem alguém que ainda nem sabe se demanda uma análise: mostra-se apenas perplexo, sem palavras que expliquem o fato de que ele não se sente feliz como deveria? Quantas vezes, para implicar alguém no processo analítico, basta que o analista escute sem espanto o que lhe diz o iniciante, acolha sem escândalo a expressão confusa de seu conflito, para que ele se descubra, como que assombrado, capaz de dizer, a partir de seu sofrimento, muito mais do que poderia ter imaginado no momento em que ainda lutava para calar a dor psíquica?

A outra face da depressão como recusa do conflito no mundo contemporâneo é a drogadição, expressão daqueles que desistiram de ser sujeitos – no mesmo sentido da expressão sujeito de um desejo inconsciente – e se entregam a um gozo mortífero que já não busca nada além de sua repetição fora do discurso. O  drogado crônico, que conhecemos muito mais das ruas do que dos consultórios, funciona no circuito da satisfação pulsional, no qual a droga representa o objeto reencontrado que já não atende ao campo (simbólico) da realização de desejos – e sim ao capo real da satisfação de necessidades.  “Figura simbólica empregada para definir as feições do anti-sujeito”, escreve Roudinesco, no lugar que antigamente era ocupado pelo louco, até que a própria psicanálise viesse a incluir a psicose como expressão de um outro modo de subjetivação do conflito.

 

Em oposição à concepção do mal-estar advindo de um desvio de funcionamento num indivíduo íntegro, o modelo do conflito propõe, em primeiro lugar, que o mal nunca é absolutamente exterior aquele que sofre. O  que não significa – não vamos confundir a psicanálise com uma teoria da moral – que o sujeito que sofre seja mau. Do ponto de vista do inconsciente, o neurótico não é pior nem melhor do que ninguém (ou seja, do que outros neuróticos). A dimensão ética instaura-se a partir do inconsciente, e não nele mesmo. Da perspectiva relação do sujeito com as manifestações do inconsciente, o mal que ele supõe estar ali são as representações recalcadas do desejo, as fantasias perversas infantis, tornadas inconcebíveis por efeito do próprio recalque.  O que não significa que se possa passar a limpo o inconsciente e dispensar todo o recalque; sem a dimensão do inconsciente, o sujeito desaparece. O máximo que se pode esperar de uma análise é que ao final do percurso nos tornemos um pouco mais íntimos do Outro, do estranho que existe em nós.

 

O sujeito neurótico da psicanálise é alguém que ainda aposta na submissão à tirania do supereu, representante do tirano morto, na esperança de ludibriar a castração, que ele ignora que seja a própria condição de seu desejo. Insistindo na preservação do fantasma onipotente do Pai, ele se recusa a desfrutar dos privilégios de sua relativa orfandade – privilégios de vier num mundo em que o Outro é vazio d intenções a seu respeito: “Ninguém nos moldará de novo em terra e barro,/ ninguém animará pela palavra o nosso pó./ Ninguém”, diz o poema de Celan, que conheceu a face vazia do Outro pelo avesso, a face de um mundo sem Deus, como prisioneiro de um campo de concentração na Romênia durante a Segunda Guerra Mundial. Se os nazistas obedeciam a um grande plano que parecia corresponder ao desejo de Alguém, suas vítimas conheceram a pior face do Outro: não a crueldade, que é ainda uma face humana, mas a indiferença.

 

O neurótico é alguém que, no mundo sem um Deus que anime “pela palavra o nosso pó”, deseja ainda servir ao Outro, a Ninguém. “Louvado sejas, Ninguém./ Por amor de ti queremos/ florir./ Em direção/ a ti.” É porque o Outro, a quem o sujeito deseja se submeter, não deseja nada dele que caberia ao sujeito tomar a responsabilidade pelo desejo e dar a este algum outro destino que não o da subordinação masoquista. Mas, antes disso, é preciso reconhecer a pequenez de nossa condição. “Um Nada/ fomos, somos, continuaremos/ a ser, florescendo:/ a rosa do Nada, a/ de Ninguém.” Um Nada que floresce, sem que Ninguém lhe peça isso. Que floresce por quê? Porque sim, seria a única resposta. Porque é possível florescer, porque a palavra é nossa, e não do Outro: “Com/ o estilete claro de alma,/ o estame ermo de céu,/ a corola vermelha/ da purpúrea palavra que cantamos/ sobre, oh, sobre/ o espinho”.

O poema de Celan não é uma apologia do sofrimento; nele não há gozo masoquista, há ironia. Florescemos em direção a Ninguém, sabemos disso. Cantaremos nossa palavra por sobre os espinhos. É um poema que nos fala de um “modo de sofrer”, nos momentos em que é necessário saber sofrer. Os poetas, no mundo contemporâneo, talvez sejam os únicos parceiros dos psicanalistas na produção de uma estética para o sofrimento: quando o Outro revela sua brutal indiferença, nada podemos fazer a não ser tomar a palavra, a “purpúrea palavra que cantamos […]/ sobre o espinho”.’

9.2 A MULHER E A PSICANÁLISE

 

(Fonte internet: http://psicanalisefreudiana.vilabol.uol.com.br/mecanismosdedefesa.html)

Minha tese é a de que a histérica que chega ao consultório freudiano, se a considerarmos como fenômeno social e não como fenômeno clínico, é uma mulher em crise com os padrões de feminilidade do final do século XIX, com os padrões vitorianos de feminilidade, vamos dizer assim. A histérica seria um sintoma, não só no sentido do sintoma neurótico individual, mas uma espécie de sintoma social, de que as mudanças promovidas na sociedade, no sistema familiar – as possibilidades que se abrem para que a mulher possa sair do ambiente doméstico, as alternativas que surgem com o começo da ascensão de uma nova classe, a burguesia -, colocam a mulher européia do século XIX em crise com aquilo que teriam sido os padrões de feminilidade. Estes, até então, pressupunham para a sexualidade da mulher um destino muito limitado (não vou dizer recalcado, mas reprimido), visto que a sociedade condicionava o início da vida sexual ao casamento, confinando a mulher em geral a esta instituição, a não ser em caso de transgressões, sempre mais perigosas para a mulher.

 

A histérica seria uma espécie de sintoma social de que todas as alternativas que surgem com o começo da ascensão de uma nova classe, a burguesia, colocam a mulher européia do século XIX em crise com aquilo que teriam sido os padrões de feminilidade.

A mulher vivia em função de uma dependência paterna que se deslocava para uma fixação no marido, sendo que praticamente inexistia a possibilidade de sublimar quaisquer insatisfações ou os excessos da sexualidade. O homem, além de ter a alternativa de uma vida sexual mais diversificada do que a que o casamento permite, tem uma série de possibilidades sublimatórias oferecidas, no final do século XIX, por sua condição social. Ele tem acesso à cultura, tem condições de sublimações em sociedade, no trabalho político, social.

 

A mulher permanece incapacitada de realizar esta sublimação, pois a vida doméstica oferece poucas possibilidades. O acesso à cultura e à vida pública mantém-se bastante limitado e ela tem de se satisfazer com a sexualidade que o casamento oferece e jogar um pouco no escuro, pois ao se casar virgem não sabia o que poderia suceder. É evidente que isto é uma caricatura mas, de qualquer maneira, o que resta a esta mulher como identidade social? Ela é mãe. Discuto este aforismo lacaniano, o de que a mulher não existe, quando Lacan afirma que a mulher só está inscrita no inconsciente como mãe. Não existe inscrição para o feminino, já que este está identificado à falta. Em termos lógicos, tendo a concordar, mas na prática prefiro outra hipótese, a que levantou Bento Prado há alguns anos, em um seminário da Unesp, em Araraquara, que achei tão boa que até hoje estou tentando desenvolver. Ele dizia: “talvez a mulher não exista, por não ter, historicamente, se inscrito na cultura a não ser como mãe.” Ou seja, o homem está inscrito na cultura não só como FALO, no sentido de símbolo sexual, mas como obra, trabalho, realização e civilização. A mulher só está inscrita como mãe. Ela não existe, não por não ter o falo, mas por não ter a FALA.

 

Ficamos brincando com essa idéia de falo e de fala, com a hipótese de que a mulher não existe até o século XIX por não ter o falo da fala e não o falo do homem, que realmente não deveria ter. A idéia da qual parto… é a de que Freud estuda uma mulher em crise com a feminilidade, este é seu sintoma e seu sofrimento. Utilizo freqüentemente o paradigma de Emma Bovary para tentar compreender quem é essa mulher do século XIX. Por uma coincidência muito interessante, Emma Bovary nasce literariamente, ou seja, começa a ser publicada na Revue de Paris, no ano em que Freud nasce. São contemporâneos. Como dizia Freud, o artista antecipa o cientista, tem antenas que captam fenômenos que o cientista demora a entender. Flaubert cria Emma Bovary quarenta anos antes de Freud inventar a sua histérica e mesmo assim estamos diante da mesma mulher. Com isso, não quero clinicar sobre Emma Bovary, afirmando que ela é uma histérica. Quero dizer: a histérica é uma Emma Bovary. A histérica é aquela mulher que deseja um destino para o qual não fora preparada, sendo que a própria mudança social que está vivenciando anuncia esta possibilidade. No caso da personagem Bovary, como pode ela trilhar este novo caminho, se está destinada ao casamento? Ela só poderá cumprir um destino diferente daquele oferecido por seu pequeno casamento de província através de outro casamento ou de uma aventura amorosa. E é muito interessante considerar-se delirante essa personagem. Acompanhando as cartas de Flaubert, quando está escrevendo Madame Bovary – ele está sempre escrevendo cartas, é um missivista incansável -, notamos a afirmação de que o burguês é um delirante. E qual o delírio do burguês? Mudar de vida, subir na vida, alterando seu destino. Hoje, este é um delírio compartilhado, 150 anos depois de Flaubert e de Emma Bovary. Não sei se Flaubert estava certo ou se nós o estamos. Mas a idéia de que é possível mudar de vida, não só através de um amante, mas pelos nossos próprios recursos, é um delírio hoje compartilhado. Vivemos em uma sociedade burguesa absolutamente estabelecida, na qual isto não é algo que cause estranhamento, como ocorria com Flaubert em 1856. A idéia de que é possível mudar de vida, não só através de um amante, mas pelos nossos próprios recursos, é um delírio hoje compartilhado. Vivemos em uma sociedade burguesa absolutamente estabelecida, na qual isto não é algo que cause estranhamento.

 

Me chama a atenção Flaubert querer escrever sobre a burguesia – ele foi um crítico implacável dos sonhos e delírios dos burgueses – realizando um romance sobre uma mulher. Ao longo da história de Emma Bovary, existe um personagem secundário, absolutamente caricato, que é o farmacêutico Homais, perfeita encarnação do burguês que muda de vida. Mas ele é um homem. Com uma série de truques e manipulações, pois é muito oportunista e esperto, desenvolve sua trajetória individual ancorada nos recursos oferecidos pela sociedade a um homem de negócios, possibilidade que Emma não tem. E chama a atenção o fato de o naufrágio absoluto de Emma Bovary, culminando com seu suicídio, não encerrar o romance. Este alonga-se por alguns capítulos – discorrendo sobre a desgraça de Charles Bovary – e termina com o sucesso de Homais. A última frase de Madame Bovary refere-se ao fato de que ele, Homais, acabou de receber a Cruz de Honra. É interessante que dois personagens igualmente delirantes – uma mulher e um homem – tenham destinos tão diversos. Essa mulher tenta realizar seu delírio através da vida amorosa com outro homem que a leve aonde ela quer – já que não pode ir sozinha – e naufraga. O outro personagem delirante é um filisteu, pessoa desinteressante, com sonhos absolutamente materialistas, um embusteiro, pois se apresenta como grande filósofo e é um blefe, terminando o romance homenageado, recebendo a Cruz de Honra, tornando-se uma grande autoridade na pequena província. Fiz esse longo percurso para dizer que essa é a mulher que Freud assiste em plena crise de infelicidade com seu destino. É curioso que o termo bovarismo, vindo da psiquiatria do início do século XX, designe uma espécie de doença mental, um sintoma psiquiátrico e não cultural. Bovarismo para Jules Gaultier, psiquiatra que inventou o termo, está relacionado à síntese de sintomas daqueles que sonham ser o que não são, exatamente o que ocorria com Emma Bovary. A possibilidade de mobilidade social, que explode com a modernidade, permite a todos nós sonhar ser o que não somos. Como esse sonho se fundamenta, como lidamos com ele, é outra história. Mas o fato é que ninguém mais nasce com o destino marcado pelo seu gênero, pela classe social em que nasceu ou grupo cultural a que pertence.

 

Fiz todas essas referências para dizer que Freud tenta, com seus padrões vitorianos de julgamento moral – isto não é uma crítica mas uma constatação – curar a histérica reconciliando-a com a feminilidade. Supõe-se que esteja em crise porque tem fantasias fálicas, de masculinidade, fantasias que não aceitam a castração feminina ou então sofra de inveja do pênis e deva ser reconciliada com sua condição. Até hoje, essa contradição permanece na psicanálise. Ou seja, a psicanálise foi o primeiro dos discursos modernos que deu plena voz à mulher, à subjetividade, ao sofrimento, às fantasias e à sexualidade femininos e, neste sentido, inaugura a possibilidade do falo da fala – que a mulher tenha uma fala tornada pública. Por outro lado, a psicanálise é absolutamente incapaz, nos modelos freudianos, de dar conta desse sofrimento porque, se a mulher estava em crise com a feminilidade, a última coisa que deveria acontecer era a recompatibilização com aqueles padrões de feminilidade.

 

Freud resume muito bem: feminilidade seria a possibilidade de a mulher aceitar uma posição passiva na relação sexual, perdendo as ilusões de ter um pênis e aceitando ter uma vagina, abandonando o prazer clitoridiano pelo prazer vaginal, aceitando o destino da maternidade e aquele de ser mulher de um único homem.

 

É exatamente isso que a mulher do século XIX não pode mais conciliar. Apesar de existirem possibilidades sempre abertas, este já não poderia mais ser considerado como todo o campo oferecido à mulher. Isto já estava destruído e o interessante é que a psicanálise contribuiu para essa destruição, ao dar voz à mulher. E, até hoje, parece que a psicanálise fica nesse impasse de tentar criar uma mulher feminina nos padrões do século XIX, considerando que seu sintoma é a histeria. Esse é um aspecto que discutirei em outro momento porque, de lá para cá, além da psicanálise, que considero uma técnica moderna, apesar de seus cem anos, outro fenômeno vem nos tirar ainda mais do eixo. Apesar de também ter, pelo menos em termos de difusão popular, quase 50 anos, é um fenômeno do qual ainda não nos demos conta. Trata-se da difusão de métodos anticoncepcionais em escala popular, desvinculando a sexualidade da procriação.
Tenho a impressão de que uma das formas de alienação mais visíveis que a era tecnológica produz, pela extrema velocidade que nos propicia, é a quebra dos padrões de contemplação e de reflexão e sua substituição por padrões de velocidade. Esta é uma digressão sobre a quantidade de fenômenos que nos ultrapassam sem termos tempo de nos darmos conta deles.

 

Estou dizendo isso porque acredito que nós, mulheres e homens, ainda não nos demos conta, passados 30, 40 anos da revolução sexual do fim dos anos 50, 60, do que representa – não só para o inconsciente mas para a identidade sexual das mulheres – essa possibilidade, perfeitamente instalada entre nós, de separar vida sexual de procriação. Só depois de os métodos anticoncepcionais nos darem alguma segurança torna-se possível, por exemplo, abrir mão totalmente do tabu da virgindade. Ele garantia, como todos sabem, a linhagem hereditária dos filhos. Temos 30, 40 anos de vida sexual fora dos padrões de tabu da virgindade, o que ainda é muito pouco.

 

Além disso, a mulher é jogada no que vou chamar de “mercado sexual” de uma hora para outra, de uma geração para outra. Isso significa que, sem que nossas mães – digo “nossas” para mulheres de 40 anos, como eu – possam nos dizer o que isso representa, porque viveram outra situação, a mulher é jogada no mercado sexual em condições absolutamente iguais de escolha em relação ao homem. Ou seja, ela não tem mais que escolher seu parceiro sexual pensando que este vai ser seu marido, pai dos seus filhos e o homem que vai sustentá-la para o resto da vida. São três coisas que se separam: se ele vai ser o marido, o pai dos filhos e seu sustentáculo econômico. Acrescente-se a isso a entrada da mulher no mercado de trabalho também em condições de quase igualdade, ao menos para mulheres de classe média. Ocorre, portanto, a possibilidade de a mulher escolher seu companheiro erótico sem que seja necessariamente o amor da sua vida, o pai de seus filhos ou decidir se quer ou não ter filhos – opção que só era dada, há 50 anos, para mulheres que não se casavam – e escolher se vai depender ou não economicamente de um homem.

 

As conseqüências são tão devastadoras, a crise na masculinidade e nos padrões desejantes é tão devastadora que nós ainda não nos demos conta disso. Estou muito longe ainda,…, de conseguir refletir sobre, por exemplo, sexualidade através de realidade virtual. Ainda não entendemos o que aconteceu há 50 anos, imagine o que está acontecendo agora… Podemos dar alguns palpites, mas…

Sexualidade humana

 

Freud, livre pensador que era, já dizia no fim do século XIX: “não vamos considerar moralmente a perversão, vamos chamar de perversão aquilo da sexualidade que foge dos padrões da procriação.” Não estamos julgando a perversão no sentido moral. Um beijo na boca pode ser tão perverso quanto uma relação homossexual, uma vez que não é necessário para a procriação. Isto é interessante, pois Freud não considera a perversão um caso de polícia ou de escândalo. Ele está dizendo que a sexualidade humana é polimorfa, admite modalidades de prazer que não têm nada a ver com aquilo que é o sexo biológico e genital, garantia da continuidade da espécie. Tenho impressão, se isto não nos assustar demais, e existem ondas de avanço e retrocesso, que estamos no limiar, que podemos chegar a uma condição, que é também o que Contardo Calligaris diz, na qual haverá uma sexualidade para cada ser humano. Isto, na verdade, é o que somos.

 

Quer dizer, em termos psíquicos, existe uma sexualidade para cada ser humano, ainda que possamos fazer coisas mais ou menos parecidas. Mas naquilo que isto representa fantasmaticamente, podemos encontrar um casal heterossexual padrão que, na relação de troca – nem sempre de forma consciente -, inverta os papéis do homem e da mulher. Isto do ponto de vista sexual, não me refiro ao fato de a mulher trabalhar e o homem ficar em casa cuidando dos filhos.  Estou falando das REPRESENTAÇÃO FÁLICAS. De fato, a possibilidade de uma sexualidade para cada pessoa é dada pela condição humana, porque somos seres de linguagem e a linguagem nos permite todos os discursos.

 

A impossibilidade da completude e a angústia na era tecnológica

 

Faço aqui uma menção à tecnologia, não àquela dos aparatos – isto é pouco importante, embora o fetichismo vá se ligar à tecnologia dos aparatos, sendo uma de suas diversas modalidades -, mas à tecnologia no que ela nos permite em relação à imagem que temos do uso de nossos corpos. Ao mesmo tempo – isto tudo está parecendo muito otimista -, temos inúmeros fatores, também produzidos pela sociedade tecnológica e de mercado, que vão contra toda essa abertura de um campo para a fruição, que parece maravilhosa. É o caso, por exemplo, da velocidade, da impossibilidade da contemplação, que é talvez um dos maiores prazeres eróticos que o ser humano pode ter, desde os tempos de Aristóteles, que dizia: “prazeres do corpo, prazeres do consumo imediato, prazeres sensuais ou sexuais estão todos abertos para nós. Mas o prazer da contemplação é o prazer.” Esse é mais do que humano, é o prazer que nos iguala aos deuses.

 

Este prazer está praticamente fora de nosso alcance.

 

A alienação que essa fé na tecnologia produz, além daquela causada pela velocidade, reside no fato de começarmos a acreditar que é possível não contar mais com a possibilidade da morte, ela se torna algo terrível e nós não a enfrentamos.

 

Temos, teoricamente, todas as possibilidades de fruição. Aí talvez se encaixe a idéia de Baudrillard, de que existe um excesso sem substância, sem consistência, porque todo excesso e todo rompimento de limites nos defrontam com a angústia de castração, com a idéia da morte, de romper definitivamente nosso limite humano, que é o da vida.

 

É como se tentássemos criar excessos – falsos – nos quais não nos deparássemos com a angústia, mas eles só nos levassem ao vazio. É o excesso dos aparatos, dos objetos, do consumo e de tudo aquilo que teoricamente podemos controlar e que não tem fundo, porque não nos remete à nossa própria condição.

 

10. O REVERSO DO AMOR: ÓDIO OU INDIFERENÇA?

Renata Pedrosa e Silva – Psicóloga –  http://www.planetapsi.hpg.ig.com.br/reverso_do_amor.html

A FANTASIA DE COMPLETUDE

1.1 O encontro amoroso

A criança conserva em sua fantasia a fusão narcísica inicial com a mãe até que alguma experiência de separação venha desiludi-la. Para o pequeno ser narcisista, tudo aquilo que é recebido como bom e prazeroso, é sentido como parte de si mesmo, somente quando alguma coisa frustra a criança, é que ela a sente como parte do mundo externo. A ilusão da criança de que ela e a mãe são Um, de que ela é tudo o que a mãe deseja se rompe quando o desejo da mãe se move para outro lugar. Neste instante a criança percebe que o Grande Outro não é tudo, que não pode estar sempre presente e a realidade se instala entre os dois que tentavam ser Um.

As fantasias e necessidades de uma criança recém-nascida estão sob o pleno domínio da paixão, assim como também, o primeiro momento do encontro amoroso. Na fusão narcísica inicial com o corpo da mãe, assim como na paixão, o mundo desaparece, o ser é o mundo e o mundo é extensão do ser.

Todas essas situações vividas pela criança em seus primeiros contatos com suas demandas pulsionais e as formas apaixonadas que estas vão adquirindo no decorrer da história de vida podem ser revividas no primeiro momento do encontro amoroso. A fantasia que surge neste instante é a de restauração do narcisismo primário. Esta diz respeito a reencontrar no ser amado sua total completude. “Esse narcisismo primário está sempre presente em todo relacionamento humano em busca do semelhante. Ele tende sempre a união, apagando os limites entre os indivíduos”. (NEVES, 1990; p.17) Espera-se que este ser que completa, possa tirar o outro da condição solitária que é a própria condição humana.

Ainda em NEVES (1990), pode-se pensar que neste momento, o casal não se opõe, não há objeções e desacordo. Portanto, se por um acaso se deparam com situações de desentendimentos, isto é colocado para o exterior. Enfim, não há limitação, os casais apaixonados vivem num mundo próprio, não havendo uma linha de demarcação entre um e outro. “Tal como na relação mãe e filho, no início da vida, não há oposição… não há discriminação – ficam reduzidas quaisquer possibilidade de discernir o eu do não eu…” (NEVES, 1990; p.17)

Desta forma, há que se considerar, que neste primeiro momento, a ilusão de completude apresenta-se e isto nada mais é do que o desejo de fusão, de dois formarem Um. Este momento é instantâneo, os sujeitos sentem-se maravilhados por terem achado alguém que depois de muito procurar acaba se encaixando em suas fantasias. “O encontro faz com que o sujeito apaixonado já capturado, sinta a vertigem de um acaso sobrenatural…” (BARTHES, 1998; p.81)

Neste sentido, as fantasias presentes no início de uma relação, não concedem existência própria ao outro, que se torna depositário das fantasias mais primitivas, um outro eu que deseja as mesmas coisas e que resgata o sujeito da condição da falta em que se encontra.

 

Na sua metade colo minha metade – O baile de máscaras

 

Durante o momento do encontro amoroso, os sujeitos apostam que não há limites para se completarem e todas as suas fantasias são tecidas no sentido de encontrarem o par ideal. Apostam terem encontrado a tão sonhada completude e a eterna felicidade. O amor nascido deste momento cria a ilusão de fusão e cada sujeito busca no outro a sua metade.

“O mito do casal perfeito que insiste desde a infância parece ter encontrado um ancoradouro. Os sonhos infantis, nesse tempo, ensaiam uma realização ao depositar nesse encontro a esperança de felicidade eterna e completude”.(OTONI DE BARROS, 1996, p. 21)

Os sujeitos enamorados apostam que podem conhecer o parceiro por inteiro, que se completam e que formam o Um. Isto pode ser perfeitamente explicitado no Mito dos Seres Colados que Aristófanes apresenta em O Banquete, PLATÃO (1987). Neste mito, duas criaturas viviam unidas numa total fusão e completude até que são condenadas a viverem separadas uma da outra. Construir o Um, neste sentido, seria colar algo no lugar daquilo que foi perdido. Algo que possa enfim anular a diferença, tamponar a falta e destituir a angústia de castração.

É justamente o objetivo de se fazer o Um que impede a relação de dois, pois jamais de dois formou-se Um. Se o objetivo de dois sujeitos tiver como base a completude, o Um, instaura-se o fracasso do amor, “… pois o amor é a possibilidade da inscrição de dois… é a possibilidade de apresentar o dois como um e um, enlaçados na disjunção, suporte da falta e da diferença.” ( OTONI DE BARROS, 1966, p. 25).

Em LACAN, (1985) pode-se ler sobre a narrativa do Baile de Máscaras, a qual será usada para ilustrar este momento, em que o traço tão procurado, se revela na ordem do impossível. Em um baile de máscaras, duas pessoas se encontram e extasiadas pela presença uma da outra, dançam a noite toda. Cada um esculpe no outro suas fantasias, estão encantados pela máscara, até que… de repente, no fim do baile, as máscaras caem. Neste instante irrompe a descoberta de que o outro não era o que realmente eles imaginavam. É o encontro com o desencontro, com o desamparo e com a desilusão do amor. Neste cair das máscaras, o sujeito se apresentará como castrado. Portanto, o amor lacaniano, que implica nessa dimensão da falta, assim como do reencontro sempre faltoso, transforma este primeiro momento em mascarado e obscuro. Neste ponto, o grande passo, foi vincular o objeto com a castração, fazendo desta o nome da falta que nenhum objeto pode tamponar.

A DESILUSÃO DO AMOR

Os desencontros do amor

“O pedaço de mim

Oh! Metade amputada de mim

Leva o que há de ti

Que a saudade dói latejada

E assim como uma fisgada

No membro que já perdi”

(CHICO BUARQUE, Pedaço de mim)

 

O momento de felicidade plena também pode ser de angústia, já que tem-se a impressão que o outro lhe escapará, o amor então irá reviver a decepção do recém- nascido que perde a condição de único no desejo da mãe. A realidade se instala entre os dois que tentavam ser o Um e revela o que estava sendo negada, a falta. “Ao retirar os óculos com o qual a paixão decora a realidade, revela-se a distância entre o objeto desejado e o encontrado, restando dessa revelação as diferenças e o desencontro” (OTONI DE BARROS,1996,p.22)

Este amor depara-se então com as diferenças, com a impossibilidade, com a frustração. Não existe objeto que satisfaça plenamente o desejo e é justamente por isso que ele não pára de renascer. Dessa decepção revivida no encontro, há uma reedição das primeiras frustrações infantis, ou seja, dessa decepção aparece o desencontro. Portanto, o encontro amoroso é uma tensão, na medida em que o que o sujeito não encontra em um lugar, busca em outro.

“A esta impossibilidade de manutenção do estado narcísico, do qual fomos expulsos com o nascimento, a psicanálise denomina castração que significa perda, falta, ou seja, o limite que é imposto à onipotência do desejo.”

“Toda escolha de objeto amoroso tem na sua base um movimento pulsional que busca encontrar o objeto perdido e, nessa via, a escolha amorosa é uma tentativa, através do semelhante, de alcançar a completude e tamponar essa falta do objeto. Assim, o amor traz a ilusão do reencontro com o objeto” (CARAM, 1995: p.92)”.

Entretanto esta falta, remete à diferença anatômica entre os sexos que apenas simboliza na infância esta perda do pênis e favorece para o menino a ilusão de completude ao mesmo tempo em que o atira à angústia diante da possibilidade da perda do pênis. No entanto, favorece à menina em relação à sua desilusão de completude. Ao mesmo tempo em que a leva à inveja do pênis, a atira também as tentativas fálicas de restauração do narcisismo, uma vez que, a menina acha que “tinha e perdeu ou então que ainda vai crescer”. Na verdade, não há solução para a verdade: castrados todos são.

Uma vez instaurado o desencontro, nem todos toleram a mudança na relação e nem todos sobrevivem a elas. Não só no sentido de se manterem juntos, mas sobretudo, no sentido de desenvolver uma relação posterior à ruptura desse pacto inicial inconsciente onde predominavam o desejo de uma perfeita fusão, onde um é espelho do outro. Neste momento, os casais reclamam a falta de amor entre eles, e no entanto, o que falta é a possibilidade de aceitar a separação em relação ao outro, de aceitar a própria individualidade. Há que se pensar em um certo grau de dependência que precisa existir para que a relação continue sendo necessária. “O amor é o anseio constante por chegar ao uno, mas se o uno existisse seria a negação do amor. Morreremos sós, como metades, sós.” (PEREZ,1987;p.87)

 

11. TEXTOS DE FREUD

 

1. Sentido da vida, felicidade e princípio de prazer

(Do Livro: “O mal estar na civilização”, Sigmund Freud, pág. 23-35)

(sublinhados: Prof. Laerte)

A questão do propósito da vida humana já foi levantada várias vezes; nunca, porém, recebeu resposta satisfatória e talvez não a admita. Alguns daqueles que a formularam acrescentaram que, se fosse demonstrado que a vida não tem propósito, esta perderia todo valor para eles. Tal ameaça, porém, não altera nada. Pelo contrário, faz parecer que temos o direito de descartar a questão, já que ela parece derivar da presunção humana, da qual muitas outras manifestações já nos são familiares. Ninguém fala sobre o propósito da vida dos animais, a menos, talvez, que se imagine que ele resida no fato de os animais se acharem a serviço do homem. Contudo, tampouco essa opinião é sustentável, de uma vez que existem muitos animais de que o homem nada pode se aproveitar, exceto descrevê-los, classificá-los e estudá-los; ainda assim, inumeráveis espécies de animais escaparam inclusive a essa utilização, pois existiram e se extinguiram antes que o homem voltasse seus olhos para elas. Mais uma vez, só a religião é capaz de resolver a questão do propósito da vida. Dificilmente incorreremos em erro ao concluirmos que a idéia de a vida possuir um propósito se forma e desmorona com o sistema religioso.

 

Voltar-nos-emos, portanto, para uma questão menos ambiciosa, a que se refere àquilo que os próprios homens, por seu comportamento, mostram ser o propósito e a intenção de suas vidas. O que pedem eles da vida e o que desejam nela realizar? A resposta mal pode provocar dúvidas. Esforçam-se para obter felicidade; querem ser felizes e assim permanecer. Essa empresa apresenta dois aspectos: uma meta positiva e uma meta negativa. Por um lado, visa a uma ausência de sofrimento e de desprazer; por outro, à experiência de intensos sentimentos de prazer. Em seu sentido mais restrito, a palavra ‘felicidade’ só se relaciona a esses últimos. Em conformidade a essa dicotomia de objetivos, a atividade do homem se desenvolve em duas direções, segundo busque realizar — de modo geral ou mesmo exclusivamente — um ou outro desses objetivos.

 

Como vemos, o que decide o propósito da vida é simplesmente o programa do princípio do prazer. Esse princípio domina o funcionamento do aparelho psíquico desde o início. Não pode haver dúvida sobre sua eficácia, ainda que o seu programa se encontre em desacordo com o mundo inteiro, tanto com o macrocosmo quanto com o microcosmo. Não há possibilidade alguma de ele ser executado; todas as normas do universo são-lhe contrárias. Ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o homem seja ‘feliz’ não se acha incluída no plano da ‘Criação’. O que chamamos de felicidade no sentido mais restrito provém da satisfação (de preferência, repentina) de necessidades represadas em alto grau, sendo, por sua natureza, possível apenas como uma manifestação episódica. Quando qualquer situação desejada pelo princípio do prazer se prolonga, ela produz tão-somente um sentimento de contentamento muito tênue. Somos feitos de modo a só podermos derivar prazer intenso de um contraste, e muito pouco de um determinado estado de coisas.

 

Assim, nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria constituição. Já a infelicidade é muito menos difícil de experimentar. O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro. Tendemos a encará-lo como uma espécie de acréscimo gratuito, embora ele não possa ser menos fatidicamente inevitável do que o sofrimento oriundo de outras fontes.

 

Não admira que, sob a pressão de todas essas possibilidades de sofrimento, os homens se tenham acostumado a moderar suas reivindicações de felicidade — tal como, na verdade, o próprio princípio do prazer, sob a influência do mundo externo, se transformou no mais modesto princípio da realidade —, que um homem pense ser ele próprio feliz, simplesmente porque escapou à infelicidade ou sobreviveu ao sofrimento, e que, em geral, a tarefa de evitar o sofrimento coloque a de obter prazer em segundo plano. A reflexão nos mostra que é possível tentar a realização dessa tarefa através de caminhos muito diferentes e que todos esses caminhos foram recomendados pelas diversas escolas de sabedoria secular e postos em prática pelos homens.

 

Uma satisfação irrestrita de todas as necessidades apresenta-se-nos como o método mais tentador de conduzir nossas vidas; isso, porém, significa colocar o gozo antes da cautela, acarretando logo o seu próprio castigo. Os outros métodos, em que a fuga do desprazer constitui o intuito primordial, diferenciam-se de acordo com a fonte de desprazer para a qual sua atenção está principalmente voltada. Alguns desses métodos são extremados; outros, moderados; alguns são unilaterais; outros atacam o problema, simultaneamente, em diversos pontos. Contra o sofrimento que pode advir dos relacionamentos humanos, a defesa mais imediata é o isolamento voluntário, o manter-se à distância das outras pessoas. A felicidade passível de ser conseguida através desse método é, como vemos, a felicidade da quietude. Contra o temível mundo externo, só podemos defender-nos por algum tipo de afastamento dele, se pretendermos solucionar a tarefa por nós mesmos. Há, é verdade, outro caminho, e melhor: o de tornar-se membro da comunidade humana e, com o auxílio de uma técnica orientada pela ciência, passar para o ataque à natureza e sujeitá-la à vontade humana. Trabalha-se então com todos para o bem de todos.

 

Contudo, os métodos mais interessantes de evitar o sofrimento são os que procuram influenciar o nosso próprio organismo. Em última análise, todo sofrimento nada mais é do que sensação; só existe na medida em que o sentimos, e só o sentimos como conseqüência de certos modos pelos quais nosso organismo está regulado.

 

O mais grosseiro, embora também o mais eficaz, desses métodos de influência é o químico: a intoxicação. Não creio que alguém compreenda inteiramente o seu mecanismo; é fato, porém, que existem substâncias estranhas, as quais, quando presentes no sangue ou nos tecidos, provocam em nós, diretamente, sensações prazerosas, alterando, também, tanto as condições que dirigem nossa sensibilidade, que nos tornamos incapazes de receber impulsos desagradáveis. Os dois efeitos não só ocorrem de modo simultâneo, como parecem estar íntima e mutuamente ligados. No entanto, é possível que haja substâncias na química de nossos próprios corpos que apresentem efeitos semelhantes pois conhecemos pelo menos um estado patológico, a mania, no qual uma condição semelhante à intoxicação surge sem administração de qualquer droga intoxicante. Além disso, nossa vida psíquica normal apresenta oscilações entre uma liberação de prazer relativamente fácil e outra comparativamente difícil, paralela à qual ocorre uma receptividade, diminuída ou aumentada, ao desprazer. É extremamente lamentável que até agora esse lado tóxico dos processos mentais tenha escapado ao exame científico. O serviço prestado pelos veículos intoxicantes na luta pela felicidade e no afastamento da desgraça é tão altamente apreciado como um benefício, que tanto indivíduos quanto povos lhes concederam um lugar permanente na economia de sua libido. Devemos a tais veículos não só a produção imediata de prazer, mas também um grau altamente desejado de independência do mundo externo, pois sabe-se que, com o auxílio desse ‘amortecedor de preocupações’, é possível, em qualquer ocasião, afastar-se da pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio, com melhores condições de sensibilidade. Sabe-se igualmente que é exatamente essa propriedade dos intoxicantes que determina o seu perigo e a sua capacidade de causar danos. São responsáveis, em certas circunstâncias, pelo desperdício de uma grande quota de energia que poderia ser empregada para o aperfeiçoamento do destino humano.

 

A complicada estrutura de nosso aparelho mental admite, contudo, um grande número de outras influências. Assim como a satisfação do instinto eqüivale para nós à felicidade, assim também um grave sofrimento surge em nós, caso o mundo externo nos deixe definhar, caso se recuse a satisfazer nossas necessidades.

 

Podemos, portanto, ter esperanças de nos libertarmos de uma parte de nossos sofrimentos, agindo sobre os impulsos instintivos. Esse tipo de defesa contra o sofrimento se aplica mais ao aparelho sensorial; ele procura dominar as fontes internas de nossas necessidades. A forma extrema disso é ocasionada pelo aniquilamento dos instintos, tal como prescrito pela sabedoria do mundo peculiar ao Oriente e praticada pelo ioga. Caso obtenha êxito, o indivíduo, é verdade, abandona também todas as outras atividades: sacrifica a sua vida e, por outra via, mais uma vez atinge apenas a felicidade da quietude. Seguimos o mesmo caminho quando os nossos objetivos são menos extremados e simplesmente tentamos controlar nossa vida instintiva. Nesse caso, os elementos controladores são os agentes psíquicos superiores, que se sujeitaram ao princípio da realidade. Aqui, a meta da satisfação não é, de modo algum, abandonada, mas garante-se uma certa proteção contra o sofrimento no sentido de que a não-satisfação não é tão penosamente sentida no caso dos instintos mantidos sob dependência como no caso dos instintos desinibidos. Contra isso, existe uma inegável diminuição nas potencialidades de satisfação. O sentimento de felicidade derivado da satisfação de um selvagem impulso instintivo não domado pelo ego é incomparavelmente mais intenso do que o derivado da satisfação de um instinto que já foi domado. A irresistibilidade dos instintos perversos e, talvez, a atração geral pelas coisas proibidas encontram aqui uma explicação econômica.

Outra técnica para afastar o sofrimento reside no emprego dos deslocamentos de libido que nosso aparelho mental possibilita e através dos quais sua função ganha tanta flexibilidade. A tarefa aqui consiste em reorientar os objetivos instintivos de maneira que eludam a frustração do mundo externo.

 

Para isso, ela conta com a assistência da SUBLIMAÇÃO DOS INSTINTOS.

 

Obtém-se o máximo quando se consegue intensificar suficientemente a produção de prazer a partir das fontes do trabalho psíquico e intelectual. Quando isso acontece, o destino pouco pode fazer contra nós. Uma satisfação desse tipo, como, por exemplo, a alegria do artista em criar, em dar corpo às suas fantasias, ou a do cientista em solucionar problemas ou descobrir verdades, possui uma qualidade especial que, sem dúvida, um dia poderemos caracterizar em termos metapsicológicos. Atualmente, apenas de forma figurada podemos dizer que tais satisfações parecem ‘mais refinadas e mais altas’. Contudo, sua intensidade se revela muito tênue quando comparada com a que se origina da satisfação de impulsos instintivos grosseiros e primários; ela não convulsiona o nosso ser físico. E o ponto fraco desse método reside em não ser geralmente aplicável, de uma vez que só é acessível a poucas pessoas. Pressupõe a posse de dotes e disposições especiais que, para qualquer fim prático, estão longe de serem comuns. E mesmo para os poucos que os possuem, o método não proporciona uma proteção completa contra o sofrimento. Não cria uma armadura impenetrável contra as investidas do destino e habitualmente falha quando a fonte do sofrimento é o próprio corpo da pessoa. Enquanto esse procedimento já mostra claramente uma intenção de nos tornar independentes do mundo externo pela busca da satisfação em processos psíquicos internos, o procedimento seguinte apresenta esses aspectos de modo ainda mais intenso. Nele, a distensão do vínculo com a realidade vai mais longe; a satisfação é obtida através de ilusões, reconhecidas como tais, sem que se verifique permissão para que a discrepância entre elas e a realidade interfira na sua fruição. A região onde essas ilusões se originam é a vida da imaginação; na época em que o desenvolvimento do senso de realidade se efetuou, essa região foi expressamente isentada das exigências do teste de realidade e posta de lado a fim de realizar desejos difíceis de serem levados a termo. À frente das satisfações obtidas através da fantasia ergue-se a fruição das obras de arte, fruição que, por intermédio do artista, é tornada acessível inclusive àqueles que não são criadores. As pessoas receptivas à influência da arte não lhe podem atribuir um valor alto demais como fonte de prazer e consolação na vida. Não obstante, a suave narcose a que a arte nos induz, não faz mais do que ocasionar um afastamento passageiro das pressões das necessidades vitais, não sendo suficientemente forte para nos levar a esquecer a aflição real.

 

Um outro processo opera de modo mais energético e completo. Considera a realidade como a única inimiga e a fonte de todo sofrimento, com a qual é impossível viver, de maneira que, se quisermos ser de algum modo felizes, temos de romper todas as relações com ela. O eremita rejeita o mundo e não quer saber de tratar com ele. Pode-se, porém, fazer mais do que isso; pode-se tentar recriar o mundo, em seu lugar construir um outro mundo, no qual os seus aspectos mais insuportáveis sejam eliminados e substituídos por outros mais adequados a nossos próprios desejos. Mas quem quer que, numa atitude de desafio desesperado, se lance por este caminho em busca da felicidade, geralmente não chega a nada. A realidade é demasiado forte para ele. Torna-se um louco; alguém que, a maioria das vezes, não encontra ninguém para ajudá-lo a tornar real o seu delírio. Afirma-se, contudo, que cada um de nós se comporta, sob determinado aspecto, como um paranóico, corrige algum aspecto do mundo que lhe é insuportável pela elaboração de um desejo e introduz esse delírio na realidade. Concede-se especial importância ao caso em que a tentativa de obter uma certeza de felicidade e uma proteção contra o sofrimento através de um remodelamento delirante da realidade, é efetuada em comum por um considerável número de pessoas. As religiões da humanidade devem ser classificadas entre os delírios de massa desse tipo. É desnecessário dizer que todo aquele que partilha um delírio jamais o reconhece como tal.

 

Não pretendo ter feito uma enumeração completa dos métodos pelos quais os homens se esforçam para conseguir a felicidade e manter afastado o sofrimento; sei também que o material poderia ter sido diferentemente disposto. Ainda não mencionei um processo — não por esquecimento, mas porque nos interessará mais tarde, em relação a outro assunto. E como se poderia esquecer, entre todas as outras, a técnica da arte de viver? Ela se faz visível por uma notável combinação de aspectos característicos. Naturalmente, visa também a tornar o indivíduo independente do Destino (como é melhor chamá-lo) e, para esse fim, localiza a satisfação em processos mentais internos, utilizando, ao proceder assim, a deslocabilidade da libido que já mencionamos.

 

Mas ela não volta as costas ao mundo externo; pelo contrário, prende-se aos objetos pertencentes a esse mundo e obtém felicidade de um relacionamento emocional com eles. Tampouco se contenta em visar a uma fuga do desprazer, uma meta, poderíamos dizer, de cansada resignação; passa por ela sem lhe dar atenção e se aferra ao esforço original e apaixonado em vista de uma consecução completa da felicidade. Na realidade, talvez se aproxime mais dessa meta do que qualquer outro método. Evidentemente, estou falando da modalidade de vida que faz do amor o centro de tudo, que busca toda satisfação em amar e ser amado. Uma atitude psíquica desse tipo chega de modo bastante natural a todos nós; uma das formas através da qual o amor se manifesta — o amor sexual — nos proporcionou nossa mais intensa experiência de uma transbordante sensação de prazer, fornecendo-nos assim um modelo para nossa busca da felicidade. Há, porventura, algo mais natural do que persistirmos na busca da felicidade do modo como a encontramos pela primeira vez? O lado fraco dessa técnica de viver é de fácil percepção, pois, do contrário, nenhum ser humano pensaria em abandonar esse caminho da felicidade por qualquer outro. É que nunca nos achamos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão desamparadamente infelizes como quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu amor. Isso, porém, não liquida com a técnica de viver baseada no valor do amor como um meio de obter felicidade. Há muito mais a ser dito a respeito.

 

Daqui podemos passar à consideração do interessante caso em que a felicidade na vida é predominantemente buscada na fruição da beleza, onde quer que esta se apresente a nossos sentidos e a nosso julgamento — a beleza das formas e a dos gestos humanos, a dos objetos naturais e das paisagens e a das criações artísticas e mesmo científicas. A atitude estética em relação ao objetivo da vida oferece muito pouca proteção contra a ameaça do sofrimento, embora possa compensá-lo bastante. A fruição da beleza dispõe de uma qualidade peculiar de sentimento, tenuemente intoxicante. A beleza não conta com um emprego evidente; tampouco existe claramente qualquer necessidade cultural sua. Apesar disso, a civilização não pode dispensá-la. Embora a ciência da estética investigue as condições sob as quais as coisas são sentidas como belas, tem sido incapaz de fornecer qualquer explicação a respeito da natureza e da origem da beleza, e, tal como geralmente acontece, esse insucesso vem sendo escamoteado sob um dilúvio de palavras tão pomposas quanto ocas. A psicanálise, infelizmente, também pouco encontrou a dizer sobre a beleza. O que parece certo é sua derivação do campo do sentimento sexual. O amor da beleza parece um exemplo perfeito de um impulso inibido em sua finalidade. ‘Beleza’ e ‘atração’ são, originalmente, atributos do objeto sexual. Vale a pena observar que os próprios órgãos genitais, cuja visão é sempre excitante, dificilmente são julgados belos; a qualidade da beleza, ao contrário, parece ligar-se a certos caracteres sexuais secundários.

A despeito da deficiência [de minha enumeração, …, aventurar-me-ei a algumas observações à guisa de conclusão para nossa investigação. O programa de tornar-se feliz, que o princípio do prazer nos impõe, …, não pode ser realizado; contudo, não devemos — na verdade, não podemos — abandonar nossos esforços de aproximá-lo da consecução, de uma maneira ou de outra. Caminhos muito diferentes podem ser tomados nessa direção, e podemos conceder prioridades quer ao aspecto positivo do objetivo, obter prazer, quer ao negativo, evitar o desprazer. Nenhum desses caminhos nos leva a tudo o que desejamos. A felicidade, no reduzido sentido em que a reconhecemos como possível, constitui um problema da economia da libido do indivíduo. Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo. Todos os tipos de diferentes fatores operarão a fim de dirigir sua escolha. É uma questão de quanta satisfação real ele pode esperar obter do mundo externo, de até onde é levado para tornar-se independente dele, e, finalmente, de quanta força sente à sua disposição para alterar o mundo, a fim de adaptá-lo a seus desejos. Nisso, sua constituição psíquica desempenhará papel decisivo, independentemente das circunstâncias externas. O homem predominantemente erótico dará preferência aos seus relacionamentos emocionais com outras pessoas; o narcisista que tende a ser auto-suficiente, buscará suas satisfações principais em seus processos mentais internos; o homem de ação nunca abandonará o mundo externo, onde pode testar sua força. Quanto ao segundo desses tipos, a natureza de seus talentos e a parcela de sublimação instintiva a ele aberta decidirão onde localizará os seus interesses. Qualquer escolha levada a um extremo condena o indivíduo a ser exposto a perigos, que surgem caso uma técnica de viver, escolhida como exclusiva, se mostre inadequada. Assim como o negociante cauteloso evita empregar todo seu capital num só negócio, assim também, talvez, a sabedoria popular nos aconselhe a não buscar a totalidade de nossa satisfação numa só aspiração. Seu êxito jamais é certo, pois depende da convergência de muitos fatores, talvez mais do que qualquer outro, da capacidade da constituição psíquica em adaptar sua função ao meio ambiente e então explorar esse ambiente em vista de obter um rendimento de prazer. Uma pessoa nascida com uma constituição instintiva especialmente desfavorável e que não tenha experimentado corretamente a transformação e a redisposição de seus componentes libidinais indispensáveis às realizações posteriores, achará difícil obter felicidade em sua situação externa, em especial se vier a se defrontar com tarefas de certa dificuldade. Como uma última técnica de vida, pelo que menos lhe trará satisfações substitutivas, é-lhe oferecida a fuga para a enfermidade neurótica, fuga que geralmente efetua quando ainda é jovem. O homem que, em anos posteriores, vê sua busca da felicidade resultar em nada ainda pode encontrar consolo no prazer oriundo da intoxicação crônica, ou então se empenhar na desesperada tentativa de rebelião que se observa na psicose.

 

Religião e felicidade

 

A religião restringe esse jogo de escolha e adaptação, desde que impõe igualmente a todos o seu próprio caminho para a aquisição da felicidade e da proteção contra o sofrimento. Sua técnica consiste em depreciar o valor da vida e deformar o quadro do mundo real de maneira delirante — maneira que pressupõe uma intimidação da inteligência. A esse preço, por fixá-las à força num estado de infantilismo psicológico e por arrastá-las a um delírio de massa, a religião consegue poupar a muitas pessoas uma neurose individual. Dificilmente, porém, algo mais. Existem, como dissemos, muitos caminhos que podem levar à felicidade passível de ser atingida pelos homens, mas nenhum que o faça com toda segurança. Mesmo a religião não consegue manter sua promessa. Se, finalmente, o crente se vê obrigado a falar dos ‘desígnios inescrutáveis’ de Deus, está admitindo que tudo que lhe sobrou, como último consolo e fonte de prazer possíveis em seu sofrimento, foi uma submissão incondicional. E, se está preparado para isso, provavelmente poderia ter-se poupado o détour que efetuou.

 

Amor ao próximo, agressividade, repressão da  Sociedade

(Do livro citado acima, pág. 64- 73 )

O trabalho psicanalítico nos mostrou que as frustrações da vida sexual são precisamente aquelas que as pessoas conhecidas como neuróticas não podem tolerar. O neurótico cria em seus sintomas satisfações substitutivas para si, e estas ou lhe causam sofrimento em si próprias, ou se lhe tornam fontes de sofrimento pela criação de dificuldades em seus relacionamentos com o meio ambiente e a sociedade a que pertence. Esse último fato é fácil de compreender; o primeiro nos apresenta um novo problema. A civilização, porém, exige outros sacrifícios, além do da satisfação sexual.

 

Abordamos a dificuldade do desenvolvimento cultural como sendo uma dificuldade geral de desenvolvimento, fazendo sua origem remontar à inércia da libido, à falta de inclinação desta para abandonar uma posição antiga por outra nova. Dizemos quase a mesma coisa quando fazemos a antítese entre civilização e sexualidade derivar da circunstância de o amor sexual constituir um relacionamento entre dois indivíduos, no qual um terceiro só pode ser supérfluo ou perturbador, ao passo que a civilização depende de relacionamentos entre um considerável número de indivíduos. Quando um relacionamento amoroso se encontra em seu auge, não resta lugar para qualquer outro interesse pelo ambiente; um casal de amantes se basta a si mesmo; sequer necessitam do filho que têm em comum para torná-los felizes. Em nenhum outro caso Eros revela tão claramente o âmago do seu ser, o seu intuito de, de mais de um, fazer um único; contudo, quando alcança isso da maneira proverbial, ou seja, através do amor de dois seres humanos, recusa-se a ir além.

 

Até aqui, podemos imaginar perfeitamente uma comunidade cultural que consista em indivíduos duplos como este, que, libidinalmente satisfeitos em si mesmos, se vinculem uns aos outros através dos elos do trabalho comum e dos interesses comuns. Se assim fosse, a civilização não teria que extrair energia alguma da sexualidade. Contudo, esse desejável estado de coisas não existe, nem nunca existiu. A realidade nos mostra que a civilização não se contenta com as ligações que até agora lhe concedemos. Visa a unir entre si os membros da comunidade também de maneira libidinal e, para tanto, emprega todos os meios. Favorece todos os caminhos pelos quais identificações fortes possam ser estabelecidas entre os membros da comunidade e, na mais ampla escala, convoca a libido inibida em sua finalidade, de modo a fortalecer o vínculo comunal através das relações de amizade. Para que esses objetivos sejam realizados, faz-se inevitável uma restrição à vida sexual. Não conseguimos, porém, entender qual necessidade força a civilização a tomar esse caminho, necessidade que provoca o seu antagonismo à sexualidade. Deve haver algum fator de perturbação que ainda não descobrimos.

 

A pista pode ser fornecida por uma das exigências ideais, tal como as denominamos, da sociedade civilizada.

 

Diz ela: ‘Amarás a teu próximo como a ti mesmo.’ Essa exigência, conhecida em todo o mundo, é, indubitavelmente, mais antiga que o cristianismo, que a apresenta como sua reivindicação mais gloriosa. No entanto, ela não é decerto excessivamente antiga; mesmo já em tempos históricos, ainda era estranha à humanidade. Se adotarmos uma atitude ingênua para com ela, como se a estivéssemos ouvindo pela primeira vez, não poderemos reprimir um sentimento de surpresa e perplexidade.

 

Por que deveremos agir desse modo? Que bem isso nos trará? Acima de tudo, como conseguiremos agir desse modo? Como isso pode ser possível? Meu amor, para mim, é algo de valioso, que eu não devo jogar fora sem reflexão. A máxima me impõe deveres para cujo cumprimento devo estar preparado e disposto a efetuar sacrifícios. Se amo uma pessoa, ela tem de merecer meu amor de alguma maneira. (Não estou levando em consideração o uso que dela posso fazer, nem sua possível significação para mim como objeto sexual, de uma vez que nenhum desses dois tipos de relacionamento entra em questão onde o preceito de amar meu próximo se acha em jogo.) Ela merecerá meu amor, se for de tal modo semelhante a mim, em aspectos importantes, que eu me possa amar nela; merecê-lo-á também, se for de tal modo mais perfeita do que eu, que nela eu possa amar meu ideal de meu próprio eu (self). Terei ainda de amá-la, se for o filho de meu amigo, já que o sofrimento que este sentiria se algum dano lhe ocorresse seria meu sofrimento também — eu teria de partilhá-lo. Mas, se essa pessoa for um estranho para mim e não conseguir atrair-me por um de seus próprios valores, ou por qualquer significação que já possa ter adquirido para a minha vida emocional, me será muito difícil amá-la. Na verdade, eu estaria errado agindo assim, pois meu amor é valorizado por todos os meus como um sinal de minha preferência por eles, e seria injusto para com eles, colocar um estranho no mesmo plano em que eles estão. Se, no entanto, devo amá-lo (com esse amor universal) meramente porque ele também é um habitante da Terra, assim como o são um inseto, uma minhoca ou uma serpente, receio então que sóuma pequena quantidade de meu amor caberá à sua parte — e não, em hipótese alguma, tanto quanto, pelo julgamento de minha razão, tenho o direito de reter para mim. Qual é o sentido de um preceito enunciado com tanta solenidade, se seu cumprimento não pode ser recomendado como razoável?

Através de um exame mais detalhado, descubro ainda outras dificuldades. Não meramente esse estranho é, em geral, indigno de meu amor; honestamente, tenho de confessar que ele possui mais direito a minha hostilidade e, até mesmo, meu ódio. Não parece apresentar o mais leve traço de amor por mim e não demonstra a mínima consideração para comigo. Se disso ele puder auferir uma vantagem qualquer, não hesitará em me prejudicar; tampouco pergunta a si mesmo se a vantagem assim obtida contém alguma proporção com a extensão do dano que causa em mim. Na verdade, não precisa nem mesmo auferir alguma vantagem; se puder satisfazer qualquer tipo de desejo com isso, não se importará em escarnecer de mim, em me insultar, me caluniar e me mostrar a superioridade de seu poder, e, quanto mais seguro se sentir e mais desamparado eu for, mais, com certeza, posso esperar que se comporte dessa maneira para comigo. Caso se conduza de modo diferente, caso mostre consideração e tolerância como um estranho, estou pronto a tratá-lo da mesma forma, em todo e qualquer caso e inteiramente fora de todo e qualquer preceito. Na verdade, se aquele imponente mandamento dissesse ‘Ama a teu próximo como este te ama’, eu não lhe faria objeções. E há um segundo mandamento que me parece mais incompreensível ainda e que desperta em mim uma oposição mais forte ainda. Trata-se do mandamento ‘Ama os teus inimigos’. Refletindo sobre ele, no entanto, percebo que estou errado em considerá-lo como uma imposição maior. No fundo, é a mesma coisa.

Acho que agora posso ouvir uma voz solene me repreendendo: ‘É precisamente porque teu próximo não é digno de amor, mas, pelo contrário, é teu inimigo, que deves amá-lo como a ti mesmo’. Compreendo então que se trata de um caso semelhante ao do Credo quia absurdum. Ora, é muito provável que meu próximo, quando lhe for prescrito que me ame como a si mesmo, responda exatamente como o fiz e me rejeite pelas mesmas razões. Espero que não tenha os mesmos fundamentos objetivos para fazê-lo, mas terá a mesma idéia que tenho. Ainda assim, o comportamento dos seres humanos apresenta diferenças que a ética, desprezando o fato de que tais diferenças são determinadas, classifica como ‘boas’ ou ‘más’. Enquanto essas inegáveis diferenças não forem removidas, a obediência às elevadas exigências éticas acarreta prejuízos aos objetivos da civilização, por incentivar o ser mau. Não podemos deixar de lembrar um incidente ocorrido na câmara dos deputados francesa, quando a pena capital estava em debate. Um dos membros acabara de defender apaixonadamente a abolição dela e seu discurso estava sendo recebido com tumultuosos aplausos, quando uma voz vinda do plenário exclamou: ‘Que messieurs les assassins commencent!

O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão dispostas a repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. — Homo homini lupus. Quem, em face de toda sua experiência da vida e da história, terá a coragem de discutir essa asserção? Via de regra, essa cruel agressividade espera por alguma provocação, ou se coloca a serviço de algum outro intuito, cujo objetivo também poderia ter sido alcançado por medidas mais brandas. Em circunstâncias que lhe são favoráveis, quando as forças mentais contrárias que normalmente a inibem se encontram fora de ação, ela também se manifesta espontaneamente e revela o homem como uma besta selvagem, a quem a consideração para com sua própria espécie é algo estranho. Quem quer que relembre as atrocidades cometidas durante as migrações raciais ou as invasões dos hunos, ou pelos povos conhecidos como mongóis sob a chefia de Gengis Khan e Tamerlão, ou na captura de Jerusalém pelos piedosos cruzados, ou mesmo, na verdade, os horrores da recente guerra mundial, quem quer que relembre tais coisas terá de se curvar humildemente ante a verdade dessa opinião.

A existência da inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor com justiça que ela está presente nos outros, constitui o fator que perturba nossos relacionamentos com o nosso próximo e força a civilização a um tão elevado dispêndio [de energia]. Em conseqüência dessa mútua hostilidade primária dos seres humanos, a sociedade civilizada se vê permanentemente ameaçada de desintegração. O interesse pelo trabalho em comum não a manteria unida; as paixões instintivas são mais fortes que os interesses razoáveis. A civilização tem de utilizar esforços supremos a fim de estabelecer limites para os instintos agressivos do homem e manter suas manifestações sob controle por formações psíquicas reativas. Daí, portanto, o emprego de métodos destinados a incitar as pessoas a identificações e relacionamentos amorosos inibidos em sua finalidade, daí a restrição à vida sexual e daí, também, o mandamento ideal de amar ao próximo como a si mesmo, mandamento que é realmente justificado pelo fato de nada mais ir tão fortemente contra a natureza original do homem. A despeito de todos os esforços, esses empenhos da civilização até hoje não conseguiram muito. Espera-se impedir os excessos mais grosseiros da violência brutal por si mesma, supondo-se o direito de usar a violência contra os criminosos; no entanto, a lei não é capaz de deitar a mão sobre as manifestações mais cautelosas e refinadas da agressividade humana. Chega a hora em que cada um de nós tem de abandonar, como sendo ilusões, as esperanças que, na juventude, depositou em seus semelhantes, e aprende quanta dificuldade e sofrimento foram acrescentados à sua vida pela má vontade deles. Ao mesmo tempo, seria injusto censurar a civilização por tentar eliminar da atividade humana a luta e a competição. Elas são indubitavelmente indispensáveis. Mas oposição não é necessariamente inimizade; simplesmente, ela é mal empregada e tornada uma ocasião para a inimizade.

 

Os comunistas acreditam ter descoberto o caminho para nos livrar de nossos males. Segundo eles, o homem é inteiramente bom e bem disposto para como seu próximo, mas a instituição da propriedade privada corrompeu-lhe a natureza. A propriedade da riqueza privada confere poder ao indivíduo e, com ele, a tentação de maltratar o próximo, ao passo que o homem excluído da posse está fadado a se rebelar hostilmente contra seu opressor.

 

Se a propriedade privada fosse abolida, possuída em comum toda a riqueza e permitida a todos a partilha de sua fruição, a má vontade e a hostilidade desapareceriam entre os homens. Como as necessidades de todos seriam satisfeitas, ninguém teria razão alguma para encarar outrem como inimigo; todos, de boa vontade, empreenderiam o trabalho que se fizesse necessário. Não estou interessado em nenhuma crítica econômica do sistema comunista; não posso investigar se a abolição da propriedade privada é conveniente ou vantajosa. Mas sou capaz de reconhecer que as premissas psicológicas em que o sistema se baseia são uma ilusão insustentável. Abolindo a propriedade privada, privamos o amor humano da agressão de um de seus instrumentos, decerto forte, embora, decerto também, não o mais forte; de maneira alguma, porém, alteramos as diferenças em poder e influência que são mal empregadas pela agressividade, nem tampouco alteramos nada em sua natureza. A agressividade não foi criada pela propriedade. Reinou quase sem limites nos tempos primitivos, quando a propriedade ainda era muito escassa, e já se apresenta no quarto das crianças, quase antes que a propriedade tenha abandonado sua forma anal e primária; constitui a base de toda relação de afeto e amor entre pessoas ( com a única exceção, talvez, do relacionamento da mãe com seu filho homem). Se eliminamos os direitos pessoais sobre a riqueza material, ainda permanecem, no campo dos relacionamentos sexuais, prerrogativas fadadas a se tornarem a fonte da mais intensa antipatia e da mais violenta hostilidade entre homens que, sob outros aspectos, se encontram em pé de igualdade. Se também removermos esse fator, permitindo a liberdade completa da vida sexual, e assim abolirmos a família, célula germinal da civilização, não podemos, é verdade, prever com facilidade quais os novos caminhos que o desenvolvimento da civilização vai tomar; uma coisa, porém, podemos esperar; é que, nesse caso, essa característica indestrutível da natureza humana seguirá a civilização.

Evidentemente, não é fácil aos homens abandonar a satisfação dessa inclinação para a agressão. Sem ela, eles não se sentem confortáveis. A vantagem que um grupo cultural, comparativamente pequeno, oferece, concedendo a esse instinto um escoadouro sob a forma de hostilidade contra intrusos, não é nada desprezível. É sempre possível unir um considerável número de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de sua agressividade. Em outra ocasião, examinei o fenômeno no qual são precisamente comunidades com territórios adjacentes, e mutuamente relacionadas também sob outros aspectos, que se empenham em rixas constantes, ridicularizando-se umas às outras, como os espanhóis e os portugueses por exemplo, os alemães do Norte e os alemães do Sul, os ingleses e os escoceses, e assim por diante. Dei a esse fenômeno o nome de ‘narcisismo das pequenas diferenças’, denominação que não ajuda muito a explicá-lo. Agora podemos ver que se trata de uma satisfação conveniente e relativamente inócua da inclinação para a agressão, através da qual a coesão entre os membros da comunidade é tornada mais fácil. Com respeito a isso, o povo judeu, espalhado por toda a parte, prestou os mais úteis serviços às civilizações dos países que os acolheram; infelizmente, porém, todos os massacres de judeus na Idade Média não bastaram para tornar o período mais pacífico e mais seguro para seus semelhantes cristãos. Quando, outrora, o Apóstolo Paulo postulou o amor universal entre os homens como o fundamento de sua comunidade cristã, uma extrema intolerância por parte da cristandade para com os que permaneceram fora dela tornou-se uma conseqüência inevitável. Para os romanos, que não fundaram no amor sua vida comunal como Estado, a intolerância religiosa era algo estranho, embora, entre eles, a religião fosse do interesse do Estado e este se achasse impregnado dela. Tampouco constituiu uma possibilidade inexeqüível que o sonho de um domínio mundial germânico exigisse o anti-semitismo como seu complemento, sendo, portanto, compreensível que a tentativa de estabelecer uma civilização nova e comunista na Rússia encontre o seu apoio psicológico na perseguição aos burgueses. Não se pode senão imaginar, com preocupação, sobre o que farão os soviéticos depois que tiverem eliminado seus burgueses.

 

Se a civilização impõe sacrifícios tão grandes, não apenas à sexualidade do homem, mas também à sua agressividade, podemos compreender melhor porque lhe é difícil ser feliz nessa civilização. Na realidade, o homem primitivo se achava em situação melhor, sem conhecer restrições de instinto. Em contrapartida, suas perspectivas de desfrutar dessa felicidade, por qualquer período de tempo, eram muito tênues. O homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança. Não devemos esquecer, contudo, que na família primeva apenas o chefe desfrutava da liberdade instintiva; o resto vivia em opressão servil. Naquele período primitivo da civilização, o contraste entre uma minoria que gozava das vantagens da civilização e uma maioria privada dessas vantagens era, portanto, levada a seus extremos. Quanto aos povos primitivos que ainda hoje existem, pesquisas cuidadosas mostraram que sua vida instintiva não é, de maneira alguma, passível de ser invejada por causa de sua liberdade. Está sujeita a restrições de outra espécie, talvez mais severas do que aquelas que dizem respeito ao homem moderno.

Quando, com toda justiça, consideramos falho o presente estado de nossa civilização, por atender de forma tão inadequada às nossas exigências de um plano de vida que nos torne felizes, e por permitir a existência de tanto sofrimento, que provavelmente poderia ser evitado; quando, com crítica impiedosa, tentamos pôr à mostra as raízes de sua imperfeição, estamos indubitavelmente exercendo um direito justo, e não nos mostrando inimigos da civilização. Podemos esperar efetuar, gradativamente, em nossa civilização alterações tais, que satisfaçam melhor nossas necessidades e escapem às nossas críticas. Mas talvez possamos também nos familiarizar com a idéia de existirem dificuldades, ligadas à natureza da civilização, que não se submeterão a qualquer tentativa de reforma. Além e acima das tarefas de restringir os instintos, para as quais estamos preparados, reivindica nossa atenção o perigo de um estado de coisas que poderia ser chamado de ‘pobreza psicológica dos grupos’. Esse perigo é mais ameaçador onde os vínculos de uma sociedade são principalmente constituídos pelas identificações dos seus membros uns com os outros, enquanto que indivíduos do tipo de um líder não adquirem a importância que lhes deveria caber na formação de um grupo. O presente estado cultural dos Estados Unidos da América nos proporcionaria uma boa oportunidade para estudar o prejuízo à civilização, que assim é de se temer. Evitarei, porém, a tentação de ingressar numa crítica da civilização americana; não desejo dar a impressão de que eu mesmo estou empregando métodos americanos.

 

 


25 Os confessionais ou Manuais de confessores eram catálogos de pecados a serem usados no confessionário. “… muitas vozes já se haviam levantado contra o critério do confessor interrogar o penitente com uma lista de pecados descritos em detalhes – tanto quanto à ação, como quanto ao parceiro – entendendo que este procedimento induzia os ingênuos a seguir “as trilhas da perdição” (Almeida, Ângela, 1992, p. 21)

26 O mais bem feito e duradouro código legal português publicado com o pomposo título de Ordenações e leis do reino de Portugal, recopiladas por mandado do mui alto, católico e poderoso rei Dom Felipe, o primeiro, foi promulgado em 1603, vigorando plenamente no Brasil até 1830. O livro V é inteiramente dedicado ao direito penal.

27 Certa aversão ‑ No início do romance Virgília tem um filho com Lobo Neves e somente ao final do texto Machado vai esclarecer as restrições frente à maternidade.

28 Este romance foi traduzido e editado em 1938 no Rio de Janeiro, contudo, pode‑se afirmar .que é uma literatura do início do século.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

%d blogueiros gostam disto: